Tributo a Licurgo de Paiva

DIÁRIO

[Tributo a Licurgo de Paiva]

Elmar Carvalho

29/12/2020

Há aproximadamente quatro meses o Chico Acoram Araújo me pediu escrevesse um poema sobre Licurgo de Paiva, meu patrono na Academia Piauiense de Letras. Na época lhe expliquei que já não escrevia versos, que meu estro, para usar uma palavra antiga e em desuso, havia batido na laje, de modo que minha pequenina cacimba da inspiração havia secado, e dela já nada minava.

O Acoram me disse que hoje existiam perfuratrizes modernas, dotadas de brocas diamantadas e rotativas, que rompiam lajes e outras rochas mais consistentes. Insisti que o veio de meus poemas estava exaurido, e eu já nada produzia. Todavia, ante sua insistência, e também considerando que meu patrono, hoje já um tanto esquecido, como esquecidos estão quase todos os poetas, merecia todo o meu apreço, prometi que o faria.

Também levei na devida conta o fato de que todos que tiveram assento na minha cadeira, a de número 10, são poetas, a começar do seu patrono. Poetas foram Celso Pinheiro, um dos maiores simbolistas do Piauí e do Brasil, monsenhor Antônio Monteiro de Sampaio (meu professor no curso de Administração de Empresas – UFPI), compositor, poeta e um dos maiores oradores sacros de nosso estado, assim como H. Dobal, que dispensa comentário, cuja poesia é por todos unanimemente aplaudida. Sobre Licurgo acho oportuno transcrever o seguinte trecho de meu discurso de posse na Academia Piauiense de Letras:

“Licurgo José Henrique de Paiva, cuja carreira literária foi inicialmente tão auspiciosa, tão plena de esperança, foi depois gradativamente declinando até o seu trágico e melancólico crepúsculo, através de uma série de vicissitudes, em sua vida particular e profissional, sobretudo ocasionadas pela dipsomania, que frustrou todos os bons augúrios com que os astros lhe acenavam. Na derrocada final do sol negro da desgraça, terminou sendo enterrado numa sepultura por muitos considerada ignota, em lugar remoto do Piauí. Talvez algum viandante, ao passar por essa cova rasa, contrariando os versos do poeta Castro Alves, que pedia ao caminheiro, que não atirasse “o ramo do alecrim cheiroso” na sepultura do escravo, para que ele melhor dormisse em paz na solidão e para não “espantar o bando buliçoso das borboletas” que ali pousavam, talvez depositem algum punhado de flores na campa desse poeta piauiense, que tanto sofreu em sua vida malograda, quando poderia ter-se alcandorado aos mais elevados píncaros do serviço público e da arte literária. O acadêmico, advogado e valoroso pesquisador de nossa história Reginaldo Miranda, referindo-se à sepultura de Licurgo, conta-nos que o vate, do alpendre da casa-grande da fazenda Santo Antônio, em que se encontrava em busca de cura para a tuberculose que o consumia, apontando para um morro que havia em frente, pediu fosse sepultado no seu cume. O seu anfitrião lhe fez ver que não seria possível tal escalada fúnebre. Licurgo pediu então para ser enterrado à sombra de uma frondosa pitombeira que até pouco tempo existia. Reginaldo Miranda acrescenta que os moradores da região conhecem bem onde fica essa cova humilde onde repousa o notável luminar das letras piauienses.”

Estive adoentado e um tanto indisposto, portanto, posto em sossego. Contudo, hoje me veio a vontade de escrever o indigitado poema, que fará o contraponto em versos a uma biografia da lavra de Chico Acoram. Estes textos e outros, em prosa e em versos, farão parte do seu livro “O menino, o rio e a cidade”, que contém crônicas, artigos e poemas, sobre variados assuntos.

Algumas crônicas são de caráter memorialístico. Os artigos versam temas históricos e biográficos, sendo que alguns, pela profundidade e tamanho, podem ser considerados pequenos ensaios. Os poemas, de diferentes estilos, alguns dos quais em cordel, fazem contraponto às biografias, o que me tornou a missão quase impossível. Eis o poema que hoje veio à tona ou à luz; ou seja, que aflorou ou minou da cacimba de minha inspiração já exaurida:

 

Licurgo de Paiva

 

As dores da alma e da vida

dissolvia no copo de bebida amarga

que mais dolorosas dores lhe infligia.

 

Os louros de glória

de há muito haviam fenecido

em sua fronte sofredora, contudo sonhadora.

 

Os espinhos da política mesquinha e medonha

coroaram esse Quixote apenas de vergonha

e de lanhos de chicote no cerne de sua carne.

 

Tísico, despojado, talvez, da esperança,

que outrora lhe sorrira, sonhava ser

inumado no cimo de um outeiro.

 

Até esse funéreo sonho malogrou.

Foi sepultado em cova rasa, sob a fronde

de altiva e exuberante pitombeira.

 

Ao menos a árvore não lhe negou

a sombra densa, verdoenga, e os louros

e confetes das ramagens.