Cunha e Silva Filho

                     A grande questão agora é enfrentar a realidade atual decorrido meio século. É uma vida. Ontem, plena adolescência. Tempo de sonhar acordado, de projetar um futuro meio fosco, com muitas imagens passando na minha frente, imagens que me faziam por vezes chorar. Agora, não me lembro por que “chorava” lá na minha terra natal deitado numa rede, num quarto meio escuro, já que a janela dava pra rua, e as duas portas me levavam a outros dois quartos, um de papai e mamãe e outro de meus irmãos. Ah, me lembro de que havia mais um quarto no qual dormiam outros irmãos. Éramos onze. Hoje só restam nove. Ainda bem que não houve tantos desfalques. Contudo, dois deles, afetivamente, valem por milhões: os meus pais, hoje em outro plano, o do mistério final revelado, ou não. Saber, quem há de? Nunca se sabe onde tudo passa a ser escuridão a não ser que pendamos pro kardecismo ou outros princípios religiosos ou científicos. A filosofia é útil, mas não pra explicar o além-túmulo.


                          Em cinquenta anos, quanta mudança em tantos aspectos! O país é outro para o bem ou para o mal. A inauguração de Brasília.. A conclusão do curso científico. A viagem pro Rio. A universidade. A troca de carreira. Muita coisa deu certo. Outras não. Não é assim a vida? A mudança política. O radicalismo militarista de 64. As perseguições. O AI-5. A tragédia brasileira Os exilados. Ou auto-exilados. Os futuros s oportunistas. Fiquei de fora. Papai não me queria nas fileiras contra a opressão e o autoritarismo. “Não filho, tenha cuidado. É perigoso demais. Podes perder a vida. Te quero vivo e feliz”. Concordei com ele. Não me arrependo.
 

                         Cinquenta anos... O mundo lá fora também mudou, e muito: guerras, conflitos, um genocídio miserável. Desbundes. A ruptura do bom-mocismo conservador. A Guerra Fria. A queda do Muro de Berlim. A derrocada soviética. O homem na Lua. O vendaval neoliberal. A globalização. O fim (?) da História. O advento das novas mídias: o computador, a internet, o celular. O universo virtual e a era dos e-mails, dos Orkuts, dos Twitters, dos e-books. O efeito estufa. O risco da destruição do Planeta. As guerras cibernéticas. O homem deixou de amar socialmente. As fraturas da subjetividade. O reinado da impessoalidade. Tudo se fragmentou. A perda das referências. Os pluralismos nas artes. A polifonia do discurso e os simulacros da comunicação. A sociedade dos espetáculos. A pós-modernidade e os anacronismos resistentes.As novas sociabilidades. Os novos padrões da sexualidade sob o império da lei. O mundo eletronicamente controlado: a vez e a hora do Big Brother. A estrutura social dos interditos. O primado do instantâneo. O consumismo hedônico. A era das incertezas, das relativizações, da violência banalizada e, por ironia do destino, do elevado avanço da área jurídica que tanto serve aos bons quanto aos maus. O avanço do profano sobre o divino. O vale-tudo na salada global. O domínio absoluto do dinheiro e a quebra dos valores éticos. O asco da política. A sociedade de Cains. Tempos apocalípticos.


                        Amigos perdidos hoje, “dormem profundamente” como no poema de Bandeira. Ubi sunt? E eu aqui, a esta altura,já penso nas aproximações do percurso derradeiro. Fiz o que pude.  me  formei, me casei, tive filhos, netos. Liguei as duas pontas da vida? Lá vem Machado. Ainda não, mas não custa chegar. Até veio a aposentadoria com todos os seus percalços e pequenas alegrias, pelo menos a de maior tranquilidade, a de não mais ser obrigado a horários rígidos e a de obedecer como o “soldado amarelo” de Graciliano. A voz foi recuperada, voz própria, voz ativa, sem sequestros nem  abafamentos vindos de cima, ou seja, sem prepotência nem mandonismos.

                       Cinquenta anos! Uma porção de tempo onde tudo quase já nos aconteceu nas coisas básicas do quotidiano brasileiro. “E agora, José?” A festa acabou? A festa quase acabou, pois ainda existem o ar pra respirar, tempo, não tanto, pra amar, e uma tênue esperança de,  qualquer dias desses, recebermos uma notícia boa, não estas notícias miúdas do ramerrão, mas a grande notícia, aquela que nos tornará plenos de felicidade quando nada nos poderá faltar, porque tudo já terá acontecido.

                     É bem possível que esta grande notícia resumiria aqueles sonhos acordados do verdes anos da adolescência, quando me encontrava deitado na rede chorando na projeção do futuro. Só, agora, entendi por que chorava tanto naquela época, naquele quarto meio escuro e naquela casa de tantos irmãos. Cinquenta anos... .É uma vida, leitor, que não pode retroceder. E agora? Teria Drummond a chave?