Tradução de um poema de Alfred de Musset (1870-1857)
Por Cunha e Silva Filho Em: 11/07/2021, às 20H38
TRADUÇÃO DE UM POEMA DE ALFRED DE MUSSET ( 1810-1857)
O POETA*
No tempo de estudante
Em nossa solitária sala,
À noite, acordado, ficava.
Diante da mesa, sentar-se veio
Uma pobre criança vestida de preto
Que lembrava ser meu irmão.
Belo e triste o seu olhar,
Pelo castiçal banhado e,
No meu livro aberto, veio ler.
Inclinou a fronte sobre a mão
E ali ficou até o amanhecer.
Pensativo qual um doce sorriso .
Quanto anelava ter meus quinze anos!
Com passos lentos caminhando
Num bosque debaixo de uma urze,
Ao pé de uma árvore, sentar-se veio
Um jovem vestido de preto
Que lembrava ser meu irmão.
Indaguei-lhe sobre o meu caminho;
Numa das mãos um alaúde segurava,
Na outra um ramalhete de rosa.
Saudou-me como um amigo
E, dando meia volta,
Apontou-me com o dedo a colina.
Na fase em que cremos no amor
Um dia, sozinho, no quarto me encontrava
Minha primeira tristeza debulhando.
Ao canto da minha lareira, sentar-se veio
Um estranho vestido de preto
Que lembrava ser meu irmão.
Parecia melancólico e inquieto.
Com uma das mãos o céu mostrou,
E com a outra um gláudio segurava.
A minha dor parecia partilhar
Porém, exalando um suspiro,
Evanesceu qual num sonho.
Na fase em que somos libertinos,
A fim de, num festim, brindar
Uma taça uma vez levantei.
Diante de mim, sentar-se veio
Um convidado vestido de preto
Que parecia ser meu irmão.
Sob o casaco sacudia
Um fato vermelho esfarrapado
E sobre a cabeça uma murta seca.
Seu braço magro procurou o meu
E a minha taça, ao tocar a dele,
Na minha frágil mão se estilhaçou.
Um ano após, à noite,
Ao pé do leito, no qual meu pai
Exalara o último suspiro, me achou ajoelhado.
Veio ter à cabeceira do leito
Um órfão vestido de preto
Que parecia ser meu irmão.
Os olhos debulhados em lágrimas
Iguais aos anjos dos sofredores
De espinhos coroado se achava
Na terra estendido, seu alaúde,
Da cor de sangue sua púrpura
E, no peito, o seu gláudio.
Lembro-me muito bem
Que sempre o reconhecia
É uma estranha visão.
Quer seja, todavia, anjo ou demônio,
Por toda parte vi essa sombra amiga.
Durante todos os meus anos.
Mais tarde, cansado já de padecer,
Para renascer ou morrer,
Decidi-me por me exilar da França.
Cansado estava de caminhar,
Quis partir e procurar
Da esperança os vestígios.
Em Pisa, ao sopé dos Apeninos,
Em Colônia, diante do Reno,
Em Nice, na vertente dos vales,
Em Florença, aos fundos dos palácios,
Em Brigues, com os velhos chalés,
No seio dos Alpes desolados.
Em Gênova, debaixo dos limoeiros,
Em Vervey, sob as verdes macieiras,
Em Havre, diante do Atlântico,
Em Veneza, no pavoroso Lido,
No qual vem morrer o pálido Adriático
Sobre a erva dum túmulo.
Por toda parte, sob estes vastos céus
Meu coração e meus amigos deixei
Sangrando como uma eterna chaga.
Por toda parte onde o coxo Enfado
Com ele a minha fadiga arrastando
E me levando até a uma grade .
Por toda parte, sempre a mesma
Sede de um mundo desconhecido
De meus sonhos segui a sombra
Por toda parte em que, sem ter vivido,
Revi o que havia visto,
A humana face e suas mentiras.
Por toda parte, na qual, pelos caminhos,
Nas minhas mãos pus a minha fronte
E qual uma mulher solucei
Por toda parte, em que, como um carneiro
Que, na moita deixa a sua lã,
Senti minha alma desnudar-se.
Por toda parte onde quis dormir
Por toda parte, onde quis morrer,
Por toda parte onde toquei a terra,
Pelo meu caminho sentar-se veio
Um infeliz vestido de preto
Que parecia ser meu irmão.
Quem, então, és tu, tu que nesta vida,
No meio do caminho, sempre encontro?
Em tua melancolia, não posso crer
Que seja um mau Destino.
Paciência suficiente revela teu doce sorriso.
Em tuas lágrimas muita piedade há.
Vendo-te, a Providência amo.
Do meu sofrimento é irmã a tua própria dor.
Com a Amizade se assemelha.
Quem és tu, então? - Não és meu anjo bom,
Jamais vens me avisar de alguma coisa.
Meus males vês ( é algo estranho!)
E sofrer não me ficas vendo
Há vinte anos que surges na minha vida
E eu nem saberia como te invocar.
Quem, então, és, se é Deus que te me envia?
Sem da minha alegria partilhar, para mim sorris.
Reclamas de mim sem que me venhas consolar!
Essa noite também te vi surgir.
Era uma noite triste.
Batia, na minha janela, a asa dos ventos.
Solitário estava sobre o meu leito curvado.
Dali contemplava para um recanto querido
Ainda tépido após um beijo ardente.
Sonhava qual uma mulher esquecida
Sentindo a vida estraçalhada
Que lentamente se desmanchava.
Reunia cartas da véspera
Cabelos, fragmentos d’amor.
Todo este passado nos meus ouvidos gritava
Do dia suas eternas sementes
Estas relíquias sagradas contemplava,
Que me faziam tremer a mão:
Lágrimas do coração devoradas pelo coração,
E que os olhos que as haviam derramado
Amanhã não mais reconhecerão!
Juntei, num pedaço de buril,
Estas ruínas dos dias ditosos.
Dizia para mim que, na terra, o que dura
É uma mecha de cabelo.
Como um mergulhador em mar profundo
Perdi-me com tanto esquecimento.
Para todos os lados, o meu olhar para ali dirigi
E, longe dos olhos do mundo, sozinho, chorei.
Do círio negro fui pôr o sinete,
Sobre este frágil e amado tesouro
Fui entregá-lo e, não podendo nele crer,
Chorando ainda dele duvidei.
Ah, fraca, mulher, orgulhosa, insensata.
Apesar de ti, dele não te olvidarás.
Por que estas lágrimas, esta garganta oprimida,
Estes soluços, se não amavas?
Sim, esmoreces, sofres, e choras.
Tua quimera, no entanto, fica entre nós dois.
Pois bem! Adeus! Contarei as horas
Que de vós me separarão.
Parti, parti e deste coração glacial
Arrancai o orgulho satisfeito
O meu ainda tenho jovem e vivaz
E muitos males nele encontrar poderão
No mal que me tenham causado.
Parti, parti! A Natureza imortal
Não vos quis tudo dar,
Ah, pobre criança que bela desejais ser
E perdoar não sabeis.
Quem vos perde não perde tudo
Lançai ao vento nosso consumado amor -
Deus eterno! Tu que tanto amei,
Se partes, por que me amas?
De repente, porém, vi, na noite sombria,
Sem ruído, brilhar uma forma,
Sobre a minha cortina
Uma sombra vi passar
E no meu leito sentar-se veio.
Quem és tu, pois, tépida e pálida visão
Sombria figura vestida de preto ?
Que queres de mim, triste pássaro passageiro?
É isso um sonho vão? É a minha própria imagem?
Que, no meu espelho, percebo?
Quem és tu, espectro da minha juventude,
Peregrino que nada deixou?
Dize-me por que sempre contigo me deparo?
Sentado a uma sombra por onde já passei?
Quem és tu, então, visitante solitário,
Assíduo hóspede de minhas dores?
Que tens feito, então, para me seguires na terra?
Quem és tu, então, quem és tu, meu irmão?
Que não assomas senão num dia de tristezas?
A VISÃO
_Amigo, o nosso pai é teu.
Nem o anjo da guarda sou.
Nem dos homens o mau destino,
Aqueles a quem amo, nem sei
Nem sei para que lado seus passos vão.
Nesta pouca lama onde estamos.
Não sou nem deus nem demônio,
E, quando me chamaste de irmão,
Tu, pelo meu nome, me chamaste.
Aonde fores, contigo estarei,
Até o derradeiro dia de tua vida.
Quando, sobre a tua pedra, me sentarei,
Teu coração o céu me confiou.
Quando, na aflição, encontrares, ,
Pelo caminho te seguirei.
Vem para mim sem inquietações.
A tua mão, contudo, tocar não posso.
Amigo, a Solidão sou eu.
(Trad. de Cunha e Silva Filho)
*NOTA:
O poema “Le poète” constitui um dos quatro poemas sob o título Nuits. Desta vez, por ora, não lhes apresento a tradução na forma bilíngue, consoante tenho feito há tempos, por se tratar de um texto mais longo. A seguir, segue a fonte da qual extraí o mencionado poema:
LEBAILLY, Nathalie & GAMARD, Matthieu. Présentation, notes, questions e aprèstexte établis. Nouvelles à chute. Classiques & Contemporains. Magnard. www.classiquesetcontemporain.com