TPM
Por Margarete Hülsendeger Em: 02/06/2014, às 09H26
Afinal, a felicidade e o amor se parecem. Não se tenta ser feliz, não se decide amar. É-se feliz, ama-se.
Mia Couto (A Confissão da Leoa)
Entre goles de café e mordidas em fatias de pão integral com manteiga, Paulo lia o jornal e Marina bisbilhotava no facebook. Todo o domingo de manhã era mesma rotina: dormir até mais tarde, colocar a mesa do café na sala e não na cozinha e juntos, sem pressa, aproveitar o silêncio. Era uma rotina gostosa e tranquila com a qual os dois já estavam acostumados.
- Olha que fofa a foto da Clarinha! – disse Marina sorrindo, enquanto virava o ipad para que Paulo também pudesse admirar a imagem da sobrinha.
Levantando, rapidamente, os olhos do jornal Paulo apenas resmungou uma resposta. Em seguida, voltaram-se a ouvir o barulho da xícara batendo contra o pires, o roçar da faca contra o pão e, de vez em quando, um pedido educado de “me passa o açúcar” ou “me alcança a manteiga”.
- Marina, acho que devias ler essa matéria – disse Paulo, com a boca cheia de pão.
- Humm... – respondeu Marina, enquanto deslizava o dedo pela tela do ipad lendo os comentários e sentindo uma pontada de inveja das fotos de viagem que os amigos postavam.
- Sério, Marina, tem tudo a ver contigo – insistiu Paulo.
Relutante a mulher levantou os olhos e encarou o marido:
- Tá bom, Paulo, do que se trata a tal matéria?
Ocupado engolindo o pedaço de pão, ele ergueu o jornal para que ela pudesse ler o título do texto: “Brasileiras estão entre as que mais sofrem com a TPM”.
Marina quase deixou a xícara de café cair e com um engasgo encarou o marido com o rosto contraído. Alheio a expressão da mulher, Paulo engoliu o pão e se pôs a explicar a matéria do jornal:
- Eles estão dando conselhos sobre o que as mulheres devem fazer para melhorar os sintomas da TPM. Você quer que eu leia? – E sem esperar pela resposta começou a ler com uma voz grave e pausada. – “Para as que se sentem irritadas, nervosas e mais agressivas recomendam-se atividades que ajudem a relaxar e a reequilibrar o corpo, como ioga e meditação. As mulheres que se sentem desanimadas, cansadas e emotivas devem investir no sono com qualidade. E as mulheres que...”.
- Você só pode estar de gozação – cortou a voz irritada de Marina.
Pela primeira vez, desde que havia começado a leitura, Paulo ergueu a cabeça do jornal e olhou direto para a esposa. Marina estava vermelha, o queixo tremia de tanta raiva e ela parecia pronta a avançar contra ele com a faca coberta de manteiga. Paulo só tinha visto aquela expressão quando ela descobriu que ele havia quebrado um bibelô de porcelana (“horroroso, por sinal!”) presente da mãe dela. Respirando fundo, ele pensou bem nas suas próximas palavras:
- Amor, não precisa ficar chateada, eu entendo muito bem essa coisa de TPM. Só estou lendo o texto para te ajudar, não estou reclamando de nada – disse, com voz baixa, esticando bem a palavra “amor”.
Marina, enfurecida, empurrou a cadeira, ficando de pé com as mãos firmemente plantadas na cintura.
- Por favor, fala que isso é uma brincadeira! – disse respirando com dificuldade.
Paulo, realmente, não sabia o que dizer. Se falasse que estava brincando ela o acusaria de estar debochando dos seus problemas femininos e se dissesse o contrário corria o risco, pelo estado atual da mulher, de apanhar ou coisa pior. Preferiu, então, permanecer em silêncio esperando que a tempestade acalmasse.
A mudez de Paulo deixou Marina ainda mais furiosa. Aliás, sempre foi assim: ela explodia e ele ficava quieto. A raiva nessas ocasiões só fazia aumentar. Precisava que ele gritasse para que ela pudesse responder, mas, não, Paulo sempre optou pelo silêncio. Então, Marina, fez como sempre, explodiu:
- Paulo, pelo amor de Deus, olha para mim!
Ele olhou.
- Então, o que você está vendo? – perguntou com raiva.
- Uma mulher muito brava? – arriscou tentando uma brincadeira.
- Sim, meu querido, uma mulher muito brava – disse debochando – Mas, pensa um pouco, OH! GRANDE INTELIGÊNCIA!, POR QUÊ?
Paulo, ainda sem compreender, piscou uma, duas vezes antes de responder:
- Não sei.
- Pensa – Marina insistiu.
A expressão de Paulo permaneceu totalmente em branco.
- Aí, meus deuses, deem-me paciência! – respondeu Marina, enquanto levantava os olhos para o céu.
Penitente, e ainda sem compreender, Paulo tentou consertar:
- Eu só queria ajudar.
Não aguentando mais aquela cara de cachorrinho sem dono, Marina saiu da sala e foi buscar mais café na cozinha. Ela não conseguia acreditar que o marido pudesse ser tão obtuso. Será que ele não a via? Será que todos esses anos de casamento o tornaram cego?
Marina olhou para a cafeteira e depois para as suas mãos trêmulas de indignação. Mãos com rugas e manchas que nenhuma plástica seria capaz de tirar. Viu seu reflexo no vidro da porta do armário e não se reconheceu. Contudo, Paulo... Virando-se deixou a xícara de café no balcão da pia e voltou para a sala.
Erguendo os olhos do jornal, Paulo viu a mulher entrar e se preparou para a briga. Marina, no entanto, foi até ele e, de forma inesperada, o abraçou com ternura. As sobrancelhas de Paulo se levantaram, com uma pergunta começando a se formar. Marina foi mais rápida, pôs os dedos sobre a sua boca e disse:
- Não fala nada Paulo. Só fica quieto e me beija.