Tempo de arrumar
Em: 17/06/2009, às 20H12
Por Gabriel Perissé
Arrumar o rumo, arrumar os olhos, arrumar os livros, arrumar a alma.
Tempo de arrumar o tempo que dedico ao ócio, e que o ócio me permita negociar comigo mesmo o preço impagável da reflexão.
Arrumar as roupas, arrumar o corpo, arrumar a cama, arrumar a agenda.
Tempo de arrumar os pensamentos, esse infinito jogo de dominó, jogo de impaciente paciência, sempre novo jogo da velha, jogo da verdade, jogo da mentira, jogo de cintura, jogo em que aposto tudo o que tenho naquilo tudo que sou.
Arrumar as ruas, arrumar as pontes, arrumar os becos, arrumar os prédios.
Tempo de arrumar os afetos, os sentimentos, as emoções, as intuições, tempo de arrumar as lembranças, tempo de arrumar as mágoas que ficaram nas gavetas do tempo, tempo de arrumar o coração.
Arrumar o que restou de ontem, arrumar o que ficou depois da desistência, o que sobrou depois das tempestades.
Tempo de arrumar por dentro e por fora, de esvaziar o cheio, de encher o esvaziado, de arrancar o podre e replantar o belo, de cortar o excesso e incrementar o atrofiado.
Arrumar com ritmo, com calma, arrumar com atenção, com respeito, com vontade.
Tempo de arrumar o espaço para que nele eu caiba, para que nele eu guarde e resguarde, para que nele eu sobreviva e viva, para que nele eu durma, para que nele eu sonhe, para que nele eu acorde afinal.
Arrumar a rotina, arrumar os deveres, arrumar os papéis, arrumar o passado.
Tempo de arrumar a vida em suas dimensões mais prosaicas ou arcaicas, vida que é labirinto, escadaria, oceano, deserto, jardim, montanha e outras metáforas.
Arrumar o riso, arrumar a raiva, arrumar a saudade, arrumar os desejos.
Tempo de arrumar as pedras, classificá-las pela ordem de chegada, arrumar um raciocínio para entender esse apedrejamento, arrumar forças para não morrer antes do tempo.
Arrumar os ritos, recuperar da religião a pertinência, recuperar da esperança a contundência, recuperar das palavras o som e o sentido.
Tempo de arrumar uma forma de atravessar o mar e chegar a outras terras, a outros mundos, sem querer colonizar ou explorar — vontade apenas de conhecer o inusitado.
Arrumar o raso e o profundo, arrumar o texto, a pontuação, arrumar o estilo.
Tempo de arrumar o tabuleiro da existência, arrumar as peças, e fazer lances melhores em novas partidas.
Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor.