ELMAR CARVALHO

 

 

Ainda em minha meninice, ouvia minha mãe dizer que os seus sonhos, quase sempre, lembravam coisas que já tinham acontecido, ou se assemelhavam a fatos que iriam acontecer. Os meus, além dos que se referem a outros conteúdos e cenários, também se assemelham a fatos que já presenciei ou que acontecerão em futuro próximo. Advirto, contudo, que não se trata de profecia (minhas pretensões não chegam a tanto), uma vez que os sonhos apenas guardam semelhança, em maior ou menor grau, com esses episódios futuros. Saliento que quase todos os meus sonhos, por mais verossímeis que sejam, apresentam algum aspecto extravagante, surpreendente ou insólito. Aliás, essas nuanças, tipicamente oníricas, foram aproveitadas pelo surrealismo, seja na pintura, seja na literatura.

 

É sabido que algumas pessoas ganham a vida como reveladores de sonhos. Aliás, há vários livros sobre esse tipo de interpretação. Freud e Jung utilizavam-se dos sonhos de seus pacientes em suas terapias. O primeiro é autor de um livro sobre esse assunto. Apregoam vários profissionais da psicologia e da psiquiatria que muitos sonhos revelam desejos ocultos da pessoa que os sonhou. De minha parte, apesar de ser um leigo, defendo que nem sempre, porquanto alguns podem ser catarse ou “exorcismos” do que não se deseja. Contudo, ao menos em potência, parecem advertir de que poderíamos ser ou fazer o que somos ou fazemos em nossos pesadelos. Um pouco de humildade, pois, não nos fará mal nenhum. Existem ainda os que acreditam que durante os sonhos a alma do sonhador viaja para outros lugares ou outras dimensões.

 

A interpretação de sonhos, talvez para evitar abusos, pelo menos no tocante a previsões, foi proibida pela Bíblia (Deuteronômio, 18:9-12), sendo esses pretensos profetas nivelados a magos, feiticeiros e necromantes. Todavia, na Bíblia há várias passagens em que Deus ou anjos falavam com os homens através de sonhos, dando-lhes avisos e orientações importantes. O profeta Daniel ganhou prestígio perante o rei babilônico Nabucodonosor, ao lhe revelar enigmático sonho, cheio de predições, e José adquiriu poder junto ao faraó quando lhe interpretou sonhos, de modo a permitir um adequado planejamento governamental durante as adversidades que viriam.

 

No livro Deus não está morto: evidências científicas da existência divina (ebook), de Amit Goswami, retiro a seguinte citação, da autoria dos biólogos Francis Crick e Graeme Mitchison (1983): “Sonhamos a fim de esquecer.” Mais tarde, em 1986, estes dois autores mitigaram esta afirmação, ao dizerem que “sonhamos para reduzir as fantasias e obsessões”. Por isso eles aduzem que talvez lembrar os sonhos não devesse ser estimulado, uma vez que se trata de “padrões que o organismo estava tentando esquecer”.

 

Durante algum tempo, quando morei em remota comarca, pensei em escrever um livro baseado em meus sonhos. Acabei desistindo da empreitada por várias razões. Muitas vezes não recordava de nenhum sonho. Outras, a lembrança era muito vaga, e depois eu terminava por esquecer completamente do que havia sonhado. Se eu fosse anotar o sonho, poderia perder o sono, o que não achava conveniente. Por outra parte, muitos eram excessivamente plásticos, visuais, podendo ser bom para um filme, videoclipe ou pintura, mas não para a arte literária, porquanto exigiria demasiada descrição. Entretanto, alguns contos e poemas extraí de sonhos que tive.

 

Décadas atrás, na petulância bisonha de minha juventude, escrevi o poema Deus, Deuses e o Nada, em que, pretensiosamente tentando provar a existência de Deus, bradei: “Num blefe descomunal / poderia até afirmar / que esta realidade não existe. / Que tudo não passa do sonho / de um deus e que esse / deus sou eu.” No referido livro de Amit Goswami, em que ele pretende provar a existência divina, através da física quântica e de outras evidências, está posto que os místicos concordam em que os sonhos “são criação do ‘pequeno eu’, e a vida em vigília é o sonho do ‘grande sonhador’ – Deus – dentro de nós”.

 

“Tenho em mim todos os sonhos do mundo”, disse Fernando Pessoa. De certa forma isso corresponderia ao sonho de ser um deus, pois somente Deus poderia ter todos os sonhos do mundo. Também esse imenso poeta disse que o mito é o nada que é tudo. Na verdade o mito é como se fosse o sonho acordado do homem, porquanto é fruto exclusivo de sua imaginação, e muitos desses mitos são deuses imaginários ou fictícios.

 

Ainda sobre sonho cantou o mesmo poeta: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.” Deste último verso pessoano podemos depreender que tudo nasce ou se concretiza do desejo, do pensamento ou do sonho, seja de Deus ou do homem. Do grande vate português, na temática de sonhos, vale a pena ler ou reler o extraordinário poema Eros e Psique, no qual o sonhador se converte no sujeito sonhado (ou vice-versa), cujos versos finais transcrevo: “Ergue a mão, e encontra hera, / E vê que ele mesmo era / A Princesa que dormia.”

 

Em assunto tão controverso e subjetivo, lembro a música Prelúdio, na qual Raul Seixas entoa em refrão: “Sonho que se sonha só / É só um sonho que se sonha só / Mas sonho que se sonha junto é realidade.” Por fim, pergunto: mas será se um sonho que se sonha só é apenas um sonho, ou um sonho será sempre algo mais do que um simples sonho?