SONATA AO LUAR
ROGEL SAMUEL
É lento o primeiro movimento. A Sonata no14, Opus 27 no2, conhecida como "Sonata ao Luar". Vladimir Horowitz a toca, num tempo apropriado. Como sempre. Nem vagaroso, nem rápido. Nem alegre, nem excessivamente trágico. Oh, como é difícil encontrar o tempo hábil. O bom ritmo. Em tudo. O ritmo clássico. Alguns aproximam-se (a vida, a sonata) do tempo, digamos, feliz. Não existe o "certo". Alguns a fazem em depressivo. Lento. Um adágio. Meu pai a executava. Eu tenho
gravada, velha fita K7, que não mais funciona, depois desses anos. Quase nunca a ouço. Covardia. Nela, percebe-se seu diálogo com o piano, a tentativa de tocar a sonata. Meu amigo Nathanael gostou da interpretação. Classificou-a numa escola de piano, de que não me lembro. A interpretação tem alguns senões, claro. Não era nenhum virtuose. Gravou em Itacoatiara. Seu piano era o único daquela cidade
do interior amazônico. Lembro-me do tom grave, quase arrastado. Do tempo lento da vida, às margens do Rio Amazonas, onde a vida lenta.
Meu irmão seguiu o pai, e virou músico. Tinha banda, tocava festas, cantava. Teclado. Vivia disso. Creio que feliz. Há muitos anos não o
vejo. Esta semana minha amiga Bliss Johnson faleceu, pianista americana. Foi uma notícia triste. O primeiro e-mail que recebi dizia que ela tinha falecido em Ohio, dois dias antes. No e-
mail seguinte, que recebi em resposta à minha pergunta sobre o que tinha acontecido, me disse Jin Yeo: "Parece que ela teve dois
ataques no último mês. E, durante seu concerto no Texas, ela desmaiou e foi levada para um hospital em Columbus, onde vive sua tia, e
entrou em coma". Bliss casara tardiamente, morava na Itália. Éramos muito amigos. Não me esqueço do dia em que recebi seu telefonema pelo celular. Eu estava no meio da selva, no Amazonas. Bliss era agitada, muito magra, falava rápido, como se nervosa. A cabeça balançava sempre, de um lado para outro. Certa noite, falou-me longamente de música, do livro de Karajan (que li, já traduzido em português). Lembro-me de que o Rio Amazonas arrasta-se lento. Não vejo o rio há muito tempo, mas é como se ainda estivesse lá. Com 18 anos vim para o Rio de Janeiro. Toquei a vida por aqui. Teci a vida. Nunca voltei ao Rio Amazonas. Que para mim nunca pareceu estranho. O Rio Solimões. Mas nunca reconheci a sua solidão, aquele seu silêncio interno. Nathanael
Caixeiro, o Nata, meu amigo, tocava violino, cantava, pintava. Alguns dias antes de morrer, me visitou. Ouvimos Mozart. Depois saímos,
caminhando pela Urca. Disse-me que Mozart aproveitava temas, os mesmos, em vários trechos. Lembro-me de Wanda Landowska, que afirmou que todos os prelúdios do "Cravo bem temperado" eram um só. Meu amigo Pepe Martinez Cano, espanhol que morava sozinho em Caiobá, Paraná, em companhia de uma bicicleta velha, ouviu Landowska em Buenos Aires. Viajou milhares de quilômetros para ouvi-la. Contava que ela entrou vestida de veludo verde-musgo escuro, sentou-se ao cravo. Tocou. Longamente. Depois, levantou-se, saiu. Não agradeceu. Não voltou. Mulher estranha. Muito trágica. Como os que viveram naquela época de nazismo, de guerra. De massacres. Muito estranha. A Argentina, na época, recebia
os melhores artistas, no Teatro Colon. Fiquei em frente, do outro lado da larga praça, no Hotel Colon, a caminho de Sydnei. A vida era
um luxo, em Buenos Aires. A vida é uma sonata. Toca-se só. Muito só. Muito estranho.
ROGEL SAMUEL
É lento o primeiro movimento. A Sonata no14, Opus 27 no2, conhecida como "Sonata ao Luar". Vladimir Horowitz a toca, num tempo apropriado. Como sempre. Nem vagaroso, nem rápido. Nem alegre, nem excessivamente trágico. Oh, como é difícil encontrar o tempo hábil. O bom ritmo. Em tudo. O ritmo clássico. Alguns aproximam-se (a vida, a sonata) do tempo, digamos, feliz. Não existe o "certo". Alguns a fazem em depressivo. Lento. Um adágio. Meu pai a executava. Eu tenho
gravada, velha fita K7, que não mais funciona, depois desses anos. Quase nunca a ouço. Covardia. Nela, percebe-se seu diálogo com o piano, a tentativa de tocar a sonata. Meu amigo Nathanael gostou da interpretação. Classificou-a numa escola de piano, de que não me lembro. A interpretação tem alguns senões, claro. Não era nenhum virtuose. Gravou em Itacoatiara. Seu piano era o único daquela cidade
do interior amazônico. Lembro-me do tom grave, quase arrastado. Do tempo lento da vida, às margens do Rio Amazonas, onde a vida lenta.
Meu irmão seguiu o pai, e virou músico. Tinha banda, tocava festas, cantava. Teclado. Vivia disso. Creio que feliz. Há muitos anos não o
vejo. Esta semana minha amiga Bliss Johnson faleceu, pianista americana. Foi uma notícia triste. O primeiro e-mail que recebi dizia que ela tinha falecido em Ohio, dois dias antes. No e-
mail seguinte, que recebi em resposta à minha pergunta sobre o que tinha acontecido, me disse Jin Yeo: "Parece que ela teve dois
ataques no último mês. E, durante seu concerto no Texas, ela desmaiou e foi levada para um hospital em Columbus, onde vive sua tia, e
entrou em coma". Bliss casara tardiamente, morava na Itália. Éramos muito amigos. Não me esqueço do dia em que recebi seu telefonema pelo celular. Eu estava no meio da selva, no Amazonas. Bliss era agitada, muito magra, falava rápido, como se nervosa. A cabeça balançava sempre, de um lado para outro. Certa noite, falou-me longamente de música, do livro de Karajan (que li, já traduzido em português). Lembro-me de que o Rio Amazonas arrasta-se lento. Não vejo o rio há muito tempo, mas é como se ainda estivesse lá. Com 18 anos vim para o Rio de Janeiro. Toquei a vida por aqui. Teci a vida. Nunca voltei ao Rio Amazonas. Que para mim nunca pareceu estranho. O Rio Solimões. Mas nunca reconheci a sua solidão, aquele seu silêncio interno. Nathanael
Caixeiro, o Nata, meu amigo, tocava violino, cantava, pintava. Alguns dias antes de morrer, me visitou. Ouvimos Mozart. Depois saímos,
caminhando pela Urca. Disse-me que Mozart aproveitava temas, os mesmos, em vários trechos. Lembro-me de Wanda Landowska, que afirmou que todos os prelúdios do "Cravo bem temperado" eram um só. Meu amigo Pepe Martinez Cano, espanhol que morava sozinho em Caiobá, Paraná, em companhia de uma bicicleta velha, ouviu Landowska em Buenos Aires. Viajou milhares de quilômetros para ouvi-la. Contava que ela entrou vestida de veludo verde-musgo escuro, sentou-se ao cravo. Tocou. Longamente. Depois, levantou-se, saiu. Não agradeceu. Não voltou. Mulher estranha. Muito trágica. Como os que viveram naquela época de nazismo, de guerra. De massacres. Muito estranha. A Argentina, na época, recebia
os melhores artistas, no Teatro Colon. Fiquei em frente, do outro lado da larga praça, no Hotel Colon, a caminho de Sydnei. A vida era
um luxo, em Buenos Aires. A vida é uma sonata. Toca-se só. Muito só. Muito estranho.