[Paulo Ghiraldelli Jr]

Eu garanto para vocês que Sócrates não era “politicamente incorreto”. E isso por uma razão simples: Sócrates também não era “politicamente correto”. É completamente desnecessário querer transformar o “politicamente correto” em alguma coisa como “Iluminismo” ou “Humanismo”, que são conceitos transhistóricos, capazes de sair do campo em que nasceram e se deslocarem até à Grécia Antiga. O “politicamente correto” é datado e nem chega a ser um conceito. Nada ganhamos com isso, de querer transformá-lo em conceito e, pior ainda, querer que ele vá caçar filósofos gregos. Para dizer a verdade, chega-se mesmo a instaurar uma confusão entre os mais jovens (ou leigos) ao insistir nessa via descabelada.

O “politicamente correto” é um herdeiro do movimento iniciado com o advento do capitalismo e a universalização da sociedade de mercado, a saber, o movimento de busca de suavização das relações entre as pessoas. Para se ter a sociedade de mercado é necessário que crenças distintas de ordem religiosa e moral sejam deixadas de lado, de modo que, para negociar, se ponha o negócio em primeiro e exclusivo plano. Nesse sentido é que deveríamos entender a Carta sobre a tolerância, de Locke. Ou seja: que venha o liberalismo e com ele os “bons modos” de não fustigar o estrangeiro que, enfim, não virá para jantar em casa, somente comprar e vender. Ora, quando um passo a mais foi dado nesse sentido, já então sob um mercado associado ao Welfare State, cinco séculos depois de Locke, o papel cumprido pela Carta sobre a tolerância foi vestido pelo “politicamente correto”. Eis a única regra: nada de ofender gratuitamente grupos emergentes ou potencialmente emergentes que podem vir a fazer crescer a vida do mercado e no mercado.

É claro que o “politicamente correto” saiu desses trilhos e adquiriu uma conotação pouco inteligente, gerando autoridades engraçadas e medíocres, preocupadas em censurar Monteiro Lobato por conta de que ele seria um “racista”. Há certos instrumentos bons que, nas mãos de idiotas, acabam gerando porcaria. Todavia, no cômputo geral, o “politicamente correto” ajudou em muito – inicialmente ele provocou mais uma “revolução semântica”, insistindo na melhor adequação entre linguagem e convivência liberal e, mais ainda, convivência pós-liberal. Eis como se deram as intenções: se o destino do Welfare State é o de reconhecer cidadania para mulheres, crianças, negros, indígenas, gays e outros grupos “diferentes” – as chamadas “minorias” – é bom que se comece a usar um vocabulário cuidadoso para cada pessoa que ocupa um grupo desses. Pois seria contraproducente ampliar direitos para aqueles em relação aos quais chamamos por nomes que soam, em algum contexto notável, de indignos. Uma vez indignos, não deveriam ter direitos!

Os conservadores nunca foram com a cara da Carta sobre a tolerância. Aliás, muitos que batiam e batem no peito se dizendo liberais e lockeanos, jamais endossaram os princípios mais contundentes do liberalismo. Esses mesmos conservadores odeiam a segunda parte da Carta, que é, do modo como estou aqui montando meu argumento, o “politicamente correto”. Buscam desqualificá-lo. Querem reduzi-lo ao que ele mostrou de imbecil por conta de imbecis. Pois o conservador acha que a democracia é antes o governo da maioria que o governo sob o aval da maioria e respeitante dos direitos das minorias – os direitos de existência, expressão e desenvolvimento cultural. Assim, ele louva o “politicamente incorreto” e, quando se mete a fazer filosofia, inventa essa esdrúxula historieta de um Sócrates militante de sua causa. Nessa hora, o conservador se perde completamente. E pior: em um país como o nosso, carente de boas escolas públicas por conta de salários arrochados, opiniões erradas educam de maneira errada de um modo muito mais pecaminoso. No Brasil os intelectuais são capazes de maiores estragos que em qualquer outro país.

Sócrates se indispôs com a polis. Mas, em nenhum momento ele se indispôs em um sentido da revolta conservadora. Ele se indispôs porque tomou sua missão religiosa como filosófica. Abraçou o lema “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida” e passou a investigar o conhecimento de cada ateniense e, assim, o seu próprio. Sócrates achava correta a equação “virtude = conhecimento”, de modo que um virtuoso seria sábio e um sábio seria virtuoso. Então, conhecer era também saber agir corretamente. Desse modo, o exame de cada um, para se saber de seu conhecimento, era necessário no sentido de não deixar toda a polis catalisar a hybris e gerar uma cidade de tolos sabichões e arrogantes. Fazendo assim, Sócrates entendia estar seguindo o preceito délfico “conhece-te a ti mesmo”. Não há qualquer vestígio de “politicamente correto” ou “politicamente incorreto” nisso.

Ah! Já sei! Talvez os que inventaram essa pérola de falar de Sócrates como “politicamente incorreto” imaginam que a “ironia socrática” é uma espécie de atividade que lembra o mau gosto de Danilo Gentile e Rafinha Bastos. Esses humoristas têm o direito de fazer o que fazem: são humoristas. Mas ser irônico não é ser humorista. Sócrates era filósofo, não humorista. Podemos rir de Sócrates porque ele nunca foi “bom moço”. Platão era nobre, Sócrates era da rua. Mas rir de alguém espirituoso não implica em achar que se está diante de um praticante da ironia socrática e, em certo sentido, nem mesmo diante de alguém com “espírito de porco”. O “politicamente incorreto”, aliás, pode nem ser grosseiro. Pode nem ter nada de irônico. E em geral não tem. O “politicamente incorreto”, quando executado, se põe contra, obviamente, ao “politicamente correto”: é a defesa da velha semântica contra qualquer criatividade que vá atiçar o nosso vocabulário, e que pode assim gerar formas de conversar menos agressivas e mais inteligentes – mais inteligentes exatamente à medida que convidam outros para atividades colaborativas, e não para o atrito e a dispersão sem razão.

Veja o exemplo: não fazemos mais piada sobre “a mulher desquitada”. Durante anos a palavra “desquitada” era pejorativa e servia para um cem número de piadas que, hoje, não fazem nenhum sentido. Não deixamos de ser engraçados por causa disso, por conta de perder a “desquitada”. Deixamos de lado a palavra “desquitada” e, enfim, ela própria depois desapareceu por causa da lei do divórcio, e não passamos a usar a palavra “divorciada” no sentido de chiste pejorativo como fazíamos com a “desquitada”. E isso ocorreu há mais ou menos trinta anos. Os mais jovens, aliás, nem podem muito bem entender do que estou falando. Essa mudança semântica foi positiva, pois veio colaborar com o movimento social que busca tornar as mulheres tão donas de seus narizes quanto os homens imaginam ser.

Ora, Sócrates e Platão foram inventores de novos vocabulários. Quantas e quantas palavras não sumiram e não foram criadas por eles, ou mudaram de sentido! Mas eles não estiveram nem um pouco preocupados em assim agir para libertar minorias ou para suavizar relações de mercado, como o caso do “politicamente correto”. Como todos que fazem filosofia, eles estiveram preocupados em gerar novos vocabulários, mas não pelas razões do “politicamente correto”. Portanto, também não pelas razões do “politicamente incorreto”.

Espero que essa modinha conservadora anti-liberal e anti-direitos, que está melando tudo com essa conversa defasada sobre o “politicamente correto”, passe de vez. Pois ela está beirando justamente aquilo que denuncia: a falta de inteligência. Do modo que está, atingindo até Sócrates, passou da conta.

© 2012 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ