Sobre o velho Parque Piauí, CSU e os retratos dos artistas quando jovens

Por   J. L. Rocha do Nascimento* 

 

Foi a propósito de uma postagem do jornalista, escritor e atual Presidente da Academia Piauiense de Letras, Zózimo Tavares, que me veio a ideia de escrever esse depoimento. Em sua postagem, Zózimo fala do papel que o bairro Parque Piauí, um enorme conjunto habitacional localizado na periferia da zona do Sul de Teresina, e onde ele morou aproximadamente por um ano, exerceu no início de sua formação cultural. Como principal referência, ele cita o Centro Social Urbano - CSU, do Parque Piauí, segundo ele um organismo vivo no qual a comunidade local se reunia durante o dia e à noite para desenvolver várias atividades, entre elas, as esportivas e, sobretudo, culturais. Acrescenta que foi naquele local que ele conheceu “uma geração de escritores que nasceu literariamente lá”. A emoldurar sua postagem, Zózimo reproduz algumas fotografias, entre elas, uma da parte frontal do CSU. Nessa imagem, pelas bandeiras hasteadas nos pavilhões e pelo conjunto de senhores de terno e gravata ladeados por populares, julgo se referir à solenidade de inauguração daquele que foi um dos mais importantes espaços para comunidade do Parque Piauí.

 

Vendo aquelas imagens, após a leitura do texto, foi impossível não relembrar do tempo em que vivi, assim como da minha experiência na área cultural, naquele bairro, onde morei entre 1977 e 1989. O sentimento de volta ao passado me estimulou a fazer um comentário acerca daquela publicação a que o Zózimo, muito gentilmente, chamou de depoimento do artista quando jovem, trazendo-me também à lembrança o célebre romance autobiográfico (Retrato do artista quando jovem) de James Joyce. Por outro lado, tendo lido o referido comentário e vendo que, nele, há pistas de questões que moldaram a forma de pensar de minha geração, o também escritor e acadêmico Dílson Lages Monteiro me pediu que desse ao testemunho o formato de crônica para publicação no Portal Entretextos.

 

O ano era 1977, mais precisamente daquele mês, quando nos mudamos para o Parque Piauí. Até então morando de aluguel, meu pai, a duras penas, finalmente, conseguira adquirir uma “casa da COHAB, financiada pelo Sistema Financeiro de Habitação – SFH, no Conjunto Parque Piauí. Um primo meu, que morava com os pais desde a fundação do conjunto habitacional, já havia me advertido: sendo jovem, no Parque ou se joga futebol ou se toca violão. Dito de outro modo: havia o time dos boleiros e o dos envolvidos em movimentos culturais (música, literatura, teatro e jornalismo), políticos e boemia, simbolizados na figura do violão. Você tinha que fazer opção por um dos lados, não tinha meio-termo, se é que me faço entender. Talvez o único que transitava entre os dois terrenos tenha sido o Venâncio do Parque, citado pelo Zózimo, já falecido, que tanto jogava futebol como tocava violão. No meu caso, como era muito magro, não tinha porte atlético e nenhum pendor para o futebol, não foi difícil optar pela atividade cultural, já iniciada, inclusive, visto que, ainda no ano de 1977, participei, com um conto de minha autoria (Novela liberada para esse horário), da icônica coletânea de contos, intitulada Ô de Casa!, organizada pelo Cineas Santos.

 

Foi onde tudo começou. O CSU do Parque Piauí era o espaço que, em torno dele, se concentravam todas as atividades culturais. Pessoal dos jornais alternativos, gente do teatro amador, poetas, prosadores e músicos, todos eles identificados, como era comum naquele tempo, com os movimentos políticos de esquerda, fizeram teatro amador, escreveram e publicaram livros, realizaram e participaram de vários festivais de música, a exemplo do famoso Festival de Música Popular do Parque Piauí – FESPAPI, este num total de sete edições. A propósito disso, participei da organização, tendo à frente a poeta e professora Auri Lessa, então Coordenadora do CSU, do VII FESPAPI. Um detalhe: todos os pretensos autores candidatos à participação do festival, no ato da inscrição, tinha que disponibilizar uma fita cassete com a composição musical para ser previamente submetida ao crivo da Polícia Federal, naquilo que ficou conhecido como “censura prévia”. Somente após a aprovação do Departamento de Policia Federal é que a inscrição poderia ser homologada pela organização, seguindo-se a seleção das músicas que participariam do festival. Bem por isso é que, no meio literário, se dizia, na época, que entre nós havia um poeta parnasiano que, na verdade, se tratava de um agente infiltrado, responsável por mapear nossas atividades e repassar as informações aos órgãos de censura e repressão, algo parecido com o que ocorria nas Universidades Federais, onde se dizia que agentes da Polícia Federal ingressavam, sem prestar vestibular, nos cursos superiores, especialmente nos das ciências sociais, como o Direito. Mas, talvez tudo não tenha passado de uma lenda, atribuída, talvez ao grau de rejeição que tínhamos por ele, um poeta que escrevia seus poemas à maneira parnasiana, inconcebível para o pensamento da época pós-modernista, uma vez que, à unanimidade, todos os poetas eram adeptos do verso livre.

 

O fato é que, como registrei no comentário facebookeano, encostei muito meu esqueleto no muro inclinado do Centro Social Urbano do Parque Piauí, ponto de encontro, sempre no início da noite, do nosso grupo, entre tantos, que batizamos com o nome Reunindo, tendo como principais integrantes este escriba, Manoel de Moura Filho, que chamávamos de “Leonam”, Alzira Probo, que atualmente mora na Argentina, e o, nos dias de hoje, grande artista plástico e design Antonio Amaral, mas que, naquela época, mal começara a rascunhar suas primeiras garatujas. A redação ficava na Quadra 30, Casa 07, onde eu morava. Eu tinha à época 18 anos e a sensação de que éramos imortais e iríamos mudar o mundo. Mais tarde, descobrimos que tudo não passava de um ledo engano.

Aproveitando a onda do mimeógrafo, por meio do qual uma geração de poetas e contistas publicavam livros rodados no Mimeógrafo, e inspirados em jornais alternativos nacionais como o Pasquim, Opinião e o Movimento e no jornal local Chapada do Corisco, criamos o jornal mimeografado O Osso – um jornal duro de ler. Como ferramentas, tínhamos as ideias na cabeça, uma velha Montana, máquina de datilografia, e um gravador Aiko, comprado a crediário na Loja Jelta, em nome da Professora Dalva, mãe do Amaral. Todas as matérias produzidas eram digitadas em folhas de papel Stencil e rodadas no Mimeografo. Jornal impresso no Parque Piauí naqueles tempos era uma novidade, pois o único jornal alternativo, organizado pelo grupo do Venâncio do Parque, era publicado apenas em um dos murais do CSU.

 

O primeiro número do jornal “O Osso” trouxe como principal atração uma entrevista, bombástica para a uma época conhecida como anos de chumbo, com o Pároco da Igreja do Parque, o Padre Roberto Agostini, que sucedeu o emblemático Padre Sandro, ambos italianos. Pra se ter uma ideia da temperatura e da repercussão, pelo menos local, fizemos uma chamada, dando destaque em caixa alta, com uma declaração dele, o entrevistado, a respeito de um político piauiense de projeção nacional e muito respeitado, o então Senador Petrônio Portela, Presidente do Senado Federal, durante o Governo Geisel e tido como, “a estrela civil da ditadura militar” Num tom crítico, e acentuando o oportunismo dos políticos de um modo geral, o Padre Roberto disse mais ou menos assim: "Se no Brasil o regime fosse o comunista, ele seria o Secretário Geral do PC". Isso foi em 1977. Imaginem a confusão. Conta-se, mas, de novo, pode ser lenda, que em face da referida declaração, a Polícia Federal, que, naquele  tempo, tinha uma atuação muito forte como órgão censor do regime de exceção, tentou recolher a edição, o que era impossível, porque o jornal era distribuído de mão em mão, de casa em casa, o que inviabilizava a operação. Lenda ou não, o certo que, quando se soube, todos ficamos “pelando de medo”, como se diz no popular.

 

Por falar em CSU, há duas versões deles: a oficial e alternativa. A primeira está representada na foto publicada pelo Zózimo, no Face, e aqui reproduzida. Parte da segunda versão está contada na edição de nº 02, do jornal “O Osso”. A principal reportagem trazia o CSU do Parque Piauí como tema central. Intitulada, como se vê na imagem abaixo, “Os intelectuais vão à luta: o CSU em questão”, a reportagem, assinada por mim, discute o papel do CSU, sobretudo na perspectiva da ala intelectual do bairro que, na defesa da entidade como um espaço da comunidade do bairro, se mostrava insatisfeita com os rumos tomados pelo órgão e com as sucessivas tentativas de apropriação daquele espaço por setores e pessoas, sobretudo da política, sem qualquer representatividade ou ligação com o bairro.

 

Como reflexo disso, nesse mesmo número, em várias notas, anunciamos o lançamento do nosso primeiro livro coletivo, uma coletânea de contos intitulada Um dedo de prosa, co-autoria de J. L. Rocha do Nascimento, M. de Moura Filho e Francisco Sales, com Prefácio do poeta Paulo (Henrique Couto) Machado e capa primorosa do artista plástico Fernando Costa. No anúncio em que noticiamos a presença de outros escritores e intelectuais como o Cineas Santos e o poeta Rubervan Du Nascimento, Chico Castro, Meneses y Morais e o próprio Paulo Machado. Definimos o local como sendo no CSU, porque entendíamos e defendíamos que aquele local deveria ser ocupado pela comunidade do Parque, o que incluía as ala intelectual do bairro. Mas, claro que eu estou falando com um olho no retrovisor. Infelizmente, como registrou o Zózimo Tavares na sua postagem, os Centros Sociais Urbanos hoje não passam de ruínas.

J. L. Rocha do Nascimento*  é contista, professor universitário e magistrado. Autor, entre outros, de Um Clarão Dentro da Noite (Scortecci Editora)