"São raríssimos os escritores que iniciam sua carreira literária publicando uma obra definitiva –um clássico. E foi exatamente o que aconteceu com Herberto Sales, que estreou em 1944, com Cascalho, definido pelo crítico Wilson Martins como uma "admirável interpretação romanesca de uma cruel realidade". O impacto causado por este livro não se limitou ao Brasil, logo surgindo traduções para diversos países, entre os quais Tchecolosváquia, Romênia, Itália, Polônia, Argentina, Rússia, China, Coréia e Japão, além da edição em Portugal." Ruy Espinheira, Posfácio, in Os Pareceres do Tempo1.
A os 27 anos, Herberto Sales era morador das Lavras, mas precisamente da cidade de Andaraí, lá no "país do garimpo", um dos tantos "países" do sertão brasileiro. Muitas coisas são inusitadas na vida deste escritor, uma delas é que, mesmo tendo morado no Rio de Janeiro, Brasília, Paris e, finalmente, São Pedro da Aldeia, durante toda a vida Herberto Sales continuou sendo morador de Andaraí, um morador especial, confessa ele, pois "as pessoas não se vão de todo, dos lugares de onde viveram".2
É que a cidade, na qual ele nasceu e viveu a juventude, foi raptada pela sua memória e lá permaneceu durante toda a sua obra. Esse rapto era, na verdade, uma obsessão do autor, revelada pelas suas palavras: "O Andaraí de hoje, no meu tempo Lavras Diamantinas, virou Chapada Diamantina, com turismo, pousada e discoteca. Mas, o meu Andaraí eu carreguei comigo quando de lá saí, dentro da mala, junto com a minha roupa e os meus sonhos. Quando eu quero retornar a esse Andaraí, é só ir para o meu quarto, ligar o toca-fita e só comigo mesmo ficar pensando. Me lembrando."3
Rua Raul Dantas, início do século XX.
Contudo, a sua obra revela também que o rapto da cidade real era uma necessidade de quem quer narrar, tinha por objetivo devolvê-la de outra forma através da narrativa: "Meu Andaraí é outro. Meu Andaraí eu carrego comigo. Carrego dentro de mim. Com os meus mortos e com os marimbus dos meus romances."4 E, resignado e complacente, é ele mesmo que se desculpa, à guisa de explicação: "a terra da gente não larga a gente"5
Herberto Sales (centro) aos 13 anos, com os seus primos afins Alberto (direita) e Domingos Dantas. Foto tirada em Andaraí.
Herberto Sales, para contar as histórias de garimpeiros, escreveu o romance Cascalho quando tinha 27 anos de idade. E, no ato de contar histórias, denunciou, ao mesmo tempo, a opressão e o abandono que uma legião de homens estava submetida pelo poder dominante local, conservador e atrasado, sob todos os aspectos. Entretanto, a sua obra de estréia ganhou outros significados, pois o romance Cascalho tornou uma grande, complexa e rica biografia do "país do garimpo", como ele chamava as Lavras Diamantinas, conhecidas por nós como Chapada Diamantina, território dos mitos, crendices, revoltas, coronéis, história e estórias da cultura baiana.
O romance Cascalho, publicado pela primeira vez em 1944, e depois em versão definitiva em 1951, ocupou um lugar na literatura brasileira pela construção narrativa do autor, pelo seu inegável talento de devolver, através da linguagem, o universo real que havia raptado. Esta devolução do real está na construção verossímil dos personagens, que retratam os diversos tipos que circulam nas ruas de Andaraí. Está também no registro da cultura lavrista, nos relatos das crendices, dos mitos e da descrição da natureza. "Em Cascalho, o linguajar local e o jargão da zona diamantífera tornam-se uma constante e se harmonizam com a linguagem clássica, contida, sem transbordamentos do autor. O linguajar local está aí presente, inscrito dentro de uma dimensão artística."6
Rua da Glória, antiga Rua do Curral.
O romance Cascalho ocupa lugar de destaque na literatura brasileira também pelo sentido histórico da obra, que ficcionaliza fatos locais e nacionais vividos pelos diferentes personagens das Lavras. O romance joga luz sobre esses fatos, realçando uma das facetas da literatura, aquela de ser também documento. Sobre isto Herberto Sales demonstra ter ciência: "Muitas vezes a verdade é mais encontrada nas obras de ficção que nas obras de história em que a buscamos".7
Depois do primeiro romance, cujo sucesso de lançamento foi o primeiro passo para que fosse transformado posteriormente em clássico da literatura brasileira, Herberto Sales publica outras obras deste veio memorialístico, como "Além dos marimbus" e "Dados biográficos do finado Marcelino". A partir daí esse veio se abriu para outros gêneros narrativos e para outros mundos além das Lavras de Andaraí.
Batalhão patriótico na Praça Aureliano Gondim, 1920.
Notas
(1) ESPINHEIRA, Ruy. Posfácio, In: Os pareceres do tempo, Herberto Sales, 4a edição, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000.
(2) SALES, Herberto. Subsidiário, confissões, memórias e histórias. José Olympio Editora, Rio de Janeiro. 1988. p. 120.
(3) SALES, Herberto. Subisidiário 2, andanças por uma lembrança, segredos e revelações. Cia Editora Nacional. São Paulo, 1991. p. 164-165.
(4) SALES, Herberto. Subsidiário, confissões, memórias e histórias. José Olympio Editora, Rio de Janeiro. 1988. p. 120.
(5) Idem, Subsidiário, confissões, memórias e histórias. José Olympio Editora, Rio de Janeiro. 1988. p.406.
(6) ALVES, Ívia Iracema. Herberto Sales, Fundação Cultural do Estado da Bahia, Salvador, 1979, p. 10.
(7) Ibidem, p. 306.