Silêncio e memória: eu conto o conto assim
Em: 04/05/2020, às 20H36
Por Diego Mendes Sousa*
SILÊNCIO
Everaldo Moreira Véras é um criador de literatura insólito e agônico. Passou à margem da celebração literária, sem o reconhecimento devido ante a grandeza do seu legado. Publicou quarenta e quatro livros de diversos gêneros. Estreou tardio, em 1977, aos quarenta anos de idade, com a beleza cintilante de O Menino dos Óculos de Aro de Metal, dirigido ao público infantil e elogiado por gente de proa, como Gilberto Freyre, Jorge Amado, Josué Montello, Rachel de Queiroz e Mauro Mota. A invenção narrativa e a liberdade na sintaxe e na estilística, além da espontânea simplicidade, elevam o seu texto inovador, dando também a ilustração poética-singular de um genuíno cirurgião da palavra.
Em 2017, comemoraram-se os oitenta anos do nascimento deste enlevado escritor, momento importante em que foi devolvida a memória de Everaldo Moreira Véras à cidade do seu mistério inaugural, Parnaíba, litoral do Piauí, onde, infelizmente, ainda é um anônimo. Uma personagem desconhecida para os intelectuais, inclusive.
Everaldo Moreira Véras saiu do Piauí na sua juventude e perdeu a convivência natalícia. Fez carreira no Recife, onde arrebatou os maiores prêmios literários, como o Casa de las Américas de Cuba, pelo livro A Insônia do Mar.
Na realidade, hoje a literatura é pouco cultuada. O brasileiro lê pouco. O piauiense, também. Esse contexto desfavorável, aliado às distâncias físicas e afetivas, fez com que o nome de Everaldo se apagasse no tempo da nossa memória. Recentemente, Parnaíba deu o primeiro passo para o justo restauro da história humanística construída por Everaldo Moreira Véras. Decerto, começará a ganhar leitores, a ser admirado e amado, porque possui imenso valor para a Literatura Brasileira.
O Prefeito Municipal da Parnaíba, Francisco de Assis de Moraes Souza, alcunhado de Mão Santa, concedeu em 2017, em memória, a Medalha e o Diploma do Mérito Municipal a Everaldo Moreira Véras. Na ocasião, a viúva do escritor, Maria de Lourdes Amorim Véras – que vive em Alagoas – e este poeta, doamos à Biblioteca Pública da Parnaíba a obra completa de Everaldo.
No mesmo ato, foi inaugurada uma sala de literatura infantil em homenagem a Everaldo Moreira Véras. O vereador Geraldo Alencar Filho fez uma oração louvando os feitos literários desse notável escritor, na sede da Câmara Municipal da Parnaíba, bem como inaugurou uma rua chamada Poeta Everaldo Moreira Véras.
A preparação do presente volume póstumo Eu Conto o Conto Assim (Editora Penalux, 2020), obra inédita de ensaios de Everaldo Moreira Véras, é o lastro e a sedimentação de uma inteligência que luzirá sempre para o amanhã, pois a verve de Everaldo é envolta em vidência.
A poesia em estado sublime percorre todos os textos de Everaldo Moreira Véras. É detentor da prosa-poética, pois se trata de um poeta nato, apesar de ter publicado somente três volumes do gênero: Fissuras, Camas Separadas e A Insônia do Mar.
Os voos mais altos de Everaldo são os romances: A Hora Anterior e O Canto de Sal. São narrativas originais, repletas de erotismo e de angústia existencial. Everaldo Moreira Véras legou mais de quinhentos contos, que espelham costuras formidáveis dos elementos poéticos e ficcionais. Everaldo Moreira Véras é tão insigne que chegou a ser publicado, diversas vezes, pela famosa Editora José Olympio, do Rio de Janeiro.
MEMÓRIA
Eu Conto o Conto Assim foi concluído na praia de Boa Viagem, no Recife, por Everaldo Moreira Véras (1937-2011), em janeiro de 2010, mas não publicado. Trata-se de uma obra póstuma e inédita, fruto de uma pesquisa minuciosa sobre a criação literária desse grande escritor piauiense/pernambucano, celebrado com efusão em seu tempo, nos espaços da Livraria Livro 7, inclusive, onde se reunia a intelectualidade do Recife, no bairro da Boa Vista.
Everaldo Moreira Véras nasceu na Parnaíba, na costa do Piauí, a 17 de agosto de 1937. Sua dicção é universal. Não cantou a sua aldeia, porém, nunca deixou de registrar em sua biografia a cidade mágica do seu nascimento. A sua Literatura está impregnada da condição humana, do medo da morte e do desejo de viver. É um homem solar e de múltiplas vivências, jamais relegou a sua origem. É também primo do escritor maranhense Humberto de Campos, imortal da Academia Brasileira de Letras, e que desfrutou da sua infância na Parnaíba.
Everaldo Moreira Véras é gênio. Um escritor robusto e pleno em tudo que escreveu. Sua incisão criadora é tão fértil quão a luz literária de um Assis Brasil (1932-) ou de um Benjamim Santos (1939), seus pares conterrâneos e contemporâneos.
Preservar a memória de vultos como Everaldo Moreira Véras é de suma importância para a continuidade da humanidade. É um ideal para o futuro. O que somos sem o exemplo? Todo escritor, via de regra, é um humanista, quando poeta, é o fundador da sua cidade. Everaldo Moreira Véras não somente recria o imaginário, como também oferta à posteridade, um elo fraterno de iluminações e de consciência coletiva.
Tenho procurado respeitar os nossos liames evolutivos, pondo em evidência personalidades que pontuaram uma época, que influenciaram uma geração e influenciarão muitas outras.
EU CONTO O CONTO ASSIM
Eu Conto o Conto Assim é um valioso ensaio sobre o Conto, gênero literário difundido e praticado no Brasil com maestria. O livro apresenta um vasto índice de autores nacionais, com destaque especial para Machado de Assis e Guimarães Rosa. É um manual sobre criação, métodos e caminhos, para veteranos e iniciantes da arte de contar estórias curtas.
Everaldo Moreira Véras, senhor e mestre premiado da narrativa, navega por um assunto delicado, que é o ofício de ensinar a escrever. Contudo, transita de maneira didática e fluente, valendo-se dos ensinamentos de notáveis narradores da sua admiração, como Clarice Lispector, Rubem Fonseca, Luiz Vilela, Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon.
O volume apresenta a larga bibliografia do seu autor, bem como um belo registro iconográfico.
*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense. Atual curador da sua formidável obra literária.
https://www.editorapenalux.com.br/autor/NTQw/Everaldo_Moreira_Veras
https://www.editorapenalux.com.br/catalogo-titulo/eu-conto-o-conto-assim
TRECHO INICIAL DA OBRA
EU CONTO O CONTO ASSIM
E UM CONTO
DE EVERALDO MOREIRA VÉRAS
ESCOLHIDO POR DIEGO MENDES SOUSA
Conversaremos sobre o gênero literário mais discutido na literatura brasileira, o CONTO.
(O Conto na literatura nacional é o que me interessa, que me empolga. Bebo nesta fonte, a brasileira, busco os autores estrangeiros esporadicamente).
O debate acontecerá em tom informal, nada de aula, ensinar a escrever ou algo semelhante. Sim, porque escrever é uma arte, não admite a estória de ser ensinada. É um dom, um legado de Deus, a gente nasce escritor como nasce branco, preto, inteligente, desinteligente etc. Impossível passar para alguém o ofício de escrever, seria o mesmo que transformar uma pessoa em cantor, se ele não tem afinação, ritmo, voz. Claro, se o indivíduo guarda dentro de si a centelha, o talento, a bênção divina como já dito — então, o professor poderá melhorar ou seja aperfeiçoar, relembrando os truques do ofício. Aí, valerá a dedicação, o querer, o trabalho árduo. Não existindo a luz interior, o esforço resultará em vão. Eu, por exemplo, não tenho o dom musical, estudaria cem anos e jamais aprenderia a tocar um instrumento.
Por isso, repito: faremos uma mesa-redonda tão aberta quanto possível, já que a arte de ensinar a escrever ainda não foi inventada. Seja o que for, romance, novela, crônica, conto — o talento e a vocação são imprescindíveis.
(...)
Difundido pelos portugueses, o Conto surgiu no Brasil durante os primeiros séculos da colonização, como narrativa oral. E ainda hoje existe assim, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país, misturado com as influências africanas e indígenas, os tais Contos chamados estórias de Trancoso.
Como registro escrito, foi na metade do século XIX que ele irrompeu na literatura brasileira, no começo do Romantismo. Deu-se a febre do Conto, que contaminou os intelectuais e jornalistas da época.
Um dos grandes contistas brasileiro surgiu no final do século XIX, já no período Realista: Joaquim Maria Machado de Assis. Foi o pai dos outros que o tomaram como referência e padrão.
DIÁLOGO
(Conto de Everaldo Moreira Véras)
1- 2ª-feira:
Esposa: oi
Marido: oi
2- 3ª-feira:
Esposa: agora?
Marido: não
3- 4ª-feira:
Esposa: você vai?
Marido: sim
4- 5ª-feira:
Esposa: falta pão
Marido: sim
5- 6ª-feira:
Esposa: quer o almoço?
Marido: não
6- sábado:
Esposa: oi
Marido: oi
7- domingo:
Esposa: quando chega?
Marido: não sei
8- 2ª-feira:
Esposa: chove?
Marido: chove
9- 3ª-feira:
Esposa: chegou o correio
Marido: sim
10- 4ª-feira:
Esposa: oi
Marido: oi
11- 5ª-feira:
Esposa: aqui?
Marido: não
12- 6ª-feira:
Esposa: pode ser hoje?
Marido: sim
13- sábado:
Esposa: até mais
Marido: até
14- domingo:
Esposa: onde?
Marido: não sei
15- 2ª-feira:
Esposa: quer?
Marido: não
16- 3ª-feira:
Esposa: hoje
Marido: talvez
17- 4ª-feira:
Esposa: recebeu?
Marido: não
18- 5ª-feira:
Esposa: faltou água
Marido: sim
19- 6ª-feira:
Esposa: por quê?
Marido: não sei
20- sábado:
Esposa: ainda dá tempo?
Marido: talvez
21- domingo:
Esposa: tudo bem?
Marido: não
22- 2ª-feira:
Esposa: faz sol?
Marido: sim
23- 3ª-feira:
Esposa: o jantar?
Marido: sim
24- 4ª-feira:
Esposa: minha mãe faleceu
Marido: sim
25- 5ª-feira:
Esposa: oi
Marido: oi
26- 6ª-feira:
Esposa: quanto custou?
Marido: não sei
27- sábado:
Esposa: tem saldo?
Marido: não
28- domingo:
Esposa: a camisa está suja?
Marido: sim
29- 2ª-feira:
Esposa: oi
Marido: oi
30- 3ª-feira:
Esposa: está faltando tudo
Marido: sim
Tags
- Next OS ESTATUTOS DO HOMEM DE THIAGO DE MELLO
- Previous DEZ POEMAS ESSENCIAIS LUSO-BRASILEIROS – PARTE I
https://www.editorapenalux.com.br/autor/NTQw/Everaldo_Moreira_Veras