Sem personagem, a digressão se diverte
Em: 28/08/2010, às 19H45
[Raimundo Carrero]
O romance contemporâneo tem sempre uma dúvida: como começar? Em geral, aconselha-se sempre uma abertura com cena rápida para envolver o leitor. E daí em diante cena sobre cena, cena sobre cena, cena sobre cena, quase sem repouso. Esse é chamado o bom começo de uma história, de forma a deixá-lo quase atordoado, sem outra opção senão parar tudo, sentar-se e ficar ali até o fim do dia. Ou da noite quem sabe.
Isso quer dizer: ação mais ação mais ação. Até porque não se deve esquecer a fórmula razoável da cena: personagem mais ação mais seqüência, sugerida, ainda que, remotamente, por Aristóteles no livro famoso e definitivo: A poética. E quando a cena vem marcada de algum mistério, aí é o máximo. É o que dizem, não é? Leitor que se preze não quer saber de cenários, digressões, comentários, mesmo quando são seduzidos por eles, e nem sabem.
Exemplo marcante de cena sobre cena está no começo do conto As irmãs, de Joyce, por exemplo, com todo o envolvimento misterioso e rápido. Prestem a atenção:
Desta vez não havia esperança para ele: fora o terceiro ataque. Noite após noite, ao passar diante da casa (era tempo de férias), eu observava o retângulo iluminado da janela e, todas as noites, encontrava-o com a mesma luz pálida e uniforme. Se estivesse morto, pensava, eu veria o reflexo das velas nas cortinas escuras, pois sabia que duas velas devem ser colocadas à cabeceira de um defunto. Dissera-me várias vezes "não ficarei muito tempo neste mundo" e eu julgara vãs suas palavras. Sabia agora que eram verdadeiras.
É claro que estamos falando de Joyce, o genial, mas a rapidez das cenas - somadas ao mistério - não deixa dúvida de que esse é um começo que provoca o leitor e leva-a um longo duelo com o texto pela noite adentro ou, quem sabe, pelo dia adentro, com sol ou com chuva. E é claro também que uma ação provoca, aparentemente, mais entusiasmo do que um cenário - já ouvi dizer que os cenários estão mortos ou desaparecidos, puro engano, ledo engano - ou do que uma digressão - em muitos casos nem é bom falar em digressão.
Bem, pode ser - e sempre coloco a dúvida -, pode ser que seja assim, afinal o homem contemporâneo não tem tempo a perder. Quem acredita nisso colocaria em dúvida a qualidade, por exemplo, do primeiro capítulo de Dom Casmurro, o fabuloso romance de Machado de Assis. Porque se trata, na verdade, de uma digressão - digressão, aliás, que se estenderá por todo o livro - com aparência de cena de ângulo fechado - quando os personagens estão isolados e quando não se pode ver senão eles - na abordagem do poeta inominado ao personagem - Bentinho ou Casmurro - durante uma breve viagem de trem. Finge, o narrador finge. Mas ali não há apenas cena sobre cena e apenas uma digressão para que o narrador justifique o título do livro. Não adianta esperar a continuidade da ação: ela não virá. Além do mais, Machado de Assis adorava cenas de sono e vigília, que se repetirão em muitas das suas obras.
O que ocorre é que os narradores - autorizados pelos autores - costumam dissimular e é isso que os torna grandes. Narrar é o não-narrar. Sempre assim. Dizer é o não-dizer. Contar é o não-contar. Por isso, os leitores são seduzidos com tanta eficiência. Acreditam numa coisa e está acontecendo outra. Tudo isso, no entanto, é para demonstrar como o primeiro parágrafo de A educação sentimental, de Flaubert, é tão eficiente, mesmo parecendo um cenário humano quando na verdade é uma digressão. E os leitores nem gostam de digressão, não é? Ali, Flaubert consegue fazer uma digressão com ares de cenário humano, na expectativa de uma ação: afinal, o navio está prestes a sair e as pessoas estão desaparecidas? Desaparecidas, como? Tudo porque o narrador esconde os personagens mesmo com eles bem presentes. Frédéric está no leme - logo no leme -e ninguém ver. Frédéric o protagonista do romance. Nem aparecem Jacques Arnoux nem a Senhora Arnoux, por quem Frédéric arderá de paixão. Uma louca paixão de adolescente. Será que tem paixão de adolescente que não seja louca? Pudera.
Como isso acontece? Percebam:
No dia 15 de setembro de 1840, o Ville-de-Montereau, pronto a largar, soltava os seus grossos rolos de fumo junto do cais Saint-Bernard. Gente chegava esbaforida; barricas, cordas, cestos de roupa dificultavam a circulação; os marujos não respondiam a ninguém; as pessoas atropelavam-se; entre os dois cilindros eram içadas encomendas, e a vozeria perdia-se no silvo do vapor das máquinas que, escapando por entre as chapas de zinco, envolvia a cena numa nuvem esbranquiçada, enquanto a sineta , à proa, tocava sem parar.
Justamente isto: aí não há cena - apesar da citação do narrador - porque não há personagem importante para provocar a seqüência e a ação, e é cenário humano porque há pessoas se movendo mas sem objetividade narrativa. E como seria uma digressão? Porque o narrador finge apresentar um movimento objetivo quando é subjetivo: não tem efeito algum sobre a história, embora a história transcorra no navio. De propósito, ele retirou Frédéric que está no leme, mas não pode aparecer agora. Deve estar escondido para surpreender o leitor um pouco adiante. Não é assim?
É técnica pura. Frédéric, que deveria estar no cenário para transformá-lo em cena, está no leme, logo no leme, e o narrador esconde:
Um jovem de dezoito anos, de cabelos compridos, e que segurava um álbum debaixo do braço, conservava-se imóvel junto do leme.
Ou seja, não é verdade que o romance precisa somente - em muitos casos exclusivamente - de uma cena sobre cena na abertura do livro. O que é preciso mesmo é a sedução do narrador para atrair o leitor tanto em Machado de Assis quanto em Flaubert.
Exercício? Escreva uma cena, um texto de cenas sobre cenas, e depois retire os personagens, de forma que a narrativa se transforme em digressão. Para evitar problemas, use o artifício do cenário humano ou natural. É só um exercício; não precisa se preocupar.
O Museu de Alphonsus
tuas sensações
de luzes e mistérios
cúpulas e catedrais
em meus olhos parados
nas linhas tortas
de tuas letras
desenhando o nome divinal:
Constança
("Asas que Deus lhe Deus").
a paixão levitando em versos
no peito no mesmo lugar
de imaginações infindas,
Mariana.
na casa de muitos filhos
na casa de luares
na casa mística
de melancolia
onde ressoam os sinos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
e os trilhos da história
para sempre
nas pontes da memória
de teus visitantes.
Dílson Lages Monteiro, escrito em janeiro de 2013.