São João de Sende: os guegués na trajetória da morte.
Por Reginaldo Miranda Em: 24/07/2022, às 11H02
Reginaldo Miranda[1]
“Quais nos têm sido as eras do passado? Foram de infâmia, ou di-las-ei de glória?”.
A indagação é do poeta Junqueira Freire. Em nosso meio, vamos revivê-las nesta tarde, para conhecimento e julgamento dos ouvintes.
Dada a importância dos fatos e para que fique registrada para consulta dos estudantes e curiosos alinhavei algumas notas para falar nesta solenidade. Fui convidado para discorrer sobre a trajetória dos índios guegueses, desde os primeiros contatos com os brancos até a criação e extinção do aldeamento de São João de Sende. Muito já escrevi sobre esses fatos, ressaltando as seguintes obras: Aldeamento dos acoroás (2003), Piauí em foco (2003), São Gonçalo da Regeneração (2004), A ferro e fogo (2005), Autos de devassa da morte dos índios guegués (2011) e Política indigenista no sertão de dentro.
Conduzirei a minha fala respondendo algumas indagações pertinentes, que podem ser feitas por quem, pela primeira vez, se depara com o tema: Quem eram esses indígenas? Classificação linguística? Onde moravam? Quando, onde e como se deram os primeiros contatos com o colonizador lusitano? Como era sua vida antes e durante São João de Sende? Como foi depois da extinção do lugar? Por que o colonizador combatia os indígenas? Quais as razões que os motivava? Por que escolheram este local para os aldear? Quais as razões do nome? Como era a vida no aldeamento indígena? Quais foram os seus principais líderes? Como era a administração do lugar? Quais foram os administradores? E os catequizadores? Como era o cotidiano do aldeamento? Quais as razões de sua extinção? E os conflitos advindos? Para onde foram levados os habitantes do lugar? Qual seu fim? Qual o destino do patrimônio dos índios?
Pois bem, delineado o rumo da minha fala passo a responder tais questionamentos.
Eram os índios guegueses considerados tapuias, na antiga classificação geral dos jesuítas e primeiros viajantes, que assim designavam todos os índios não tupi, do Brasil. Mais tarde, com a evolução dos estudos linguísticos foram os tupis definitivamente agrupados num grupo denominado Tupi-Guarani e os demais em grupos denominados Gê, Caribe e Nu-Aruak, restando um quadro provisório sujeito a revisões posteriores. É importante ressaltar que a classificação de nossos indígenas não é étnica, e sim linguística, sendo Gê quase todos os indígenas do Piauí, inclusive os guegués, e grande parte dos pertencentes ao Brasil Central.
Conforme a época de contato com o colonizador lusitano foram denominados com algumas variações, a saber: gurguas, gurguaes, guruguéas, gurguéias, guegueses, guegués ou gueguês, nesse último caso como fruto de dúvidas na interpretação da documentação oficial.
Moravam inicialmente no vasto território que se estendia desde o rio Salitre e sertão do Pajeú, hoje na Bahia, até os arredores da lagoa de Parnaguá, no extremo-sul do Piauí. Pelo menos existem notícias de recontros nessas paragens, na última metade do século XVII. Viviam da caça, da pesca e da coleta de frutos silvestres, sendo a agricultura rudimentar.
Foram seus primeiros algozes os cavaleiros da Casa da Torre, sob o comando do capitão, depois coronel, Francisco Dias d’Ávila. Pelejaram em duas oportunidades, primeiro no verão de 1674 e depois em 1676. De um lado a ânsia da conquista, do outro a necessidade da resistência. A ganância e a cobiça da Casa da Torre não permitiram que aquele estilo de vida permanecesse nas terras que desejavam conquistar. Era preciso limpar o território, matar homens, mulheres e crianças para estabelecer as fazendas e criar bois. Também, explorar a mão-de-obra indígena. É óbvio que ninguém iria admitir essa verdade, era preciso dizer que o combate era para trazê-los ao grêmio da igreja, à civilização cristã, à suserania do rei de Portugal; para civilizá-los.
Na primeira refrega, resistiram os bravos gurugueias por algum tempo, oferecendo formidável resistência. Eram valentes e robustos, mas a disparidade de armas era enorme. São obrigados a recuar. Porém, as tropas da Casa da Torre não lhes dão trégua, impondo-lhes vários revezes e os perseguindo tenazmente, por Sento Sé, Rio Verde, enfim, transpondo o rio Grande, cujas cabeceiras nascem na cordilheira serrana do Piauí. É possível que nesta marcha tenham penetrado nos sertões de Parnaguá, alcançando as cabeceiras do rio que ficaria conhecido pelo nome da tribo, o Guruguéa ou Gurgueia. Naquela altura, devido ao cansaço e ao princípio do inverno, recuam os conquistadores para suas moradas no rio São Francisco, assim dando trégua aos indígenas e deixando aquela imensa área parcialmente conquistada.
Recompostas as forças, em princípio do verão de 1676, os agentes da Casa da Torre promovem nova entrada em rumo dos cobiçados Sertões de Dentro. Desta feita contaram com o concurso do padre Martim de Nantes, que traz os nativos de suas missões. Então, um destacamento comandado por Domingos Rodrigues de Carvalho, novamente entra em choque com os gurgueias, desta feita lutando pela conquista do sertão do Pajeú. E lhes inflige fragorosa derrota. Logo mais, em 23 ou 24 de maio, nova derrota lhes é imposta por um destacamento composto por 120 cavaleiros, comandado pelo capitão Francisco Dias d’Ávila, na foz do rio Salitre. Então, batidos em suas próprias tabas, os gurgueias recuam em rumo da cordilheira serrana do Piauí, sendo duramente perseguidos. Em 30 de maio, essa tropa “surpreende a tribo espavorida e faminta e, após ligeira escaramuça, subjugam-na, jungindo os guerreiros estropiados, e decorridos dois dias, sob fútil pretexto, degolam 400 e reduzem à escravidão mulheres e crianças. Era 1º de junho de 1676”[2].
Quatro meses depois, o governador de Pernambuco concedia as primeiras sesmarias no Gurgueia, a Francisco Dias d’Ávila, Bernardo Pereira Gago, Domingos Afonso Sertão e Julião Afonso Serra, de dez léguas de terra em quadro, para cada um. Teve então início o devassamento e colonização do vale do rio Gurgueia, cujo nome é uma triste homenagem a essa brava e inditosa nação indígena.
Desde então, buscaram os remanescentes desses indígenas abrigo no vale do rio Uruçuí, hoje Uruçuí-Preto, onde estabeleceram suas principais tabas. Algumas tabas também foram estabelecidas pelas cabeceiras do rio Parnaíba, onde entraram em guerra com seus parentes, os índios acoroás. Embora residissem esses mais para o lado de Tocantins, ali vinham anualmente em busca de alimento. Também os guegueses dominaram o território do Médio e Baixo Gurguéia, altura hoje do termo de Bom Jesus, descendo até os vales do Esfolado e Prata.
Contudo, o processo de colonização não demora a avançar sobre aqueles sertões. Em 1728, são eles combatidos pelo mestre-de-campo Bernardo de Carvalho e Aguiar. No ano seguinte, o governador e capitão-general do Maranhão concede licença aos moradores de Parnaguá, para que constituam tropa e os combatam novamente. Depois de uma década de escaramuças, voltam a ser combatidos em 1739, juntamente com os acoroás, pelos moradores de Parnaguá, que lhes fazem guerra ofensiva por ordem do rei D. João V.
Com fulcro nessa mesma ordem, em 1743, lidera a tropa que marcha contra esses ameríndios o capitão-mor de Parnaguá e cabo da tropa de guerra, Antônio Gomes Leite, que desde alguns anos vinha povoando aquela região com diversas fazendas. Em princípio do ano seguinte, esse militar consegue infligir-lhes consideráveis baixas obrigando-os a pedirem paz. Segundo aquele militar, era a nação mais bárbara e guerreira de nossos sertões e a que mais hostilidade tinha feito nas ribeiras do Gurgueia e de Parnaguá[3]. Então, em 20 de fevereiro de 1744, são aldeados 2.051 deles, no lugar Guaribas, sertão de Parnaguá, sendo administrados inicialmente por aquele militar. Foram catequisados pelo padre João Rodrigues, missionário da Companhia de Jesus, que ali chegara em maio trazendo consigo setenta índios da nação barbados. No ano seguinte, esses indígenas vão ajudar aquele militar a aldear mais de oito mil acoroás, que, então aceitam termos de paz e serem catequisados em suas próprias aldeias.
Infelizmente, sendo vítimas de fome, abuso e maus-tratos, sublevam-se meados de 1747, matando seu missionário e mais de 60 pessoas de toda a qualidade. Novamente se embrenham na mata, causando grande temor na Capitania, porque tornaram-se versados no uso de armas de fogo; e as tinham em quantidade, juntamente com pólvora e chumbo levados do arraial, além de outras oriundas dos constantes assaltos que faziam nas fazendas. Matavam à flechadas cavalos e gado vacum, atacando fazendas e comboios de gado daquelas ribeiras que se destinavam às feiras de Minas e Bahia. Durante um ligeiro confronto perderam alguns homens, embora matassem um soldado, chegando a ameaçar de invasão a vila da Mocha.
Em maio de 1751, foram combatidos pelo então sargento-mor João do Rego Castelo Branco, que já os conhecia porque lutara ao lado do comandante de Parnaguá. Depois de bater vários guegueses, acoroás e timbiras os aprisionou e aldeou no lugar São Félix da Boa Vista, situado no atual termo de Parnarama, no Maranhão, de onde foram removidos para São Félix de Balsas, hoje cidade de mesmo nome. Era um aldeamento misto de índios guegues, timbiras, paracatis, acoroás mirins e açu. Foi na direção desse aldeamento que o governador João Pereira Caldas encontrou João do Rego Castelo Branco, em 1759, quando instalou a capitania de São José do Piauí. Foi então convocado para chefiar as tropas militares do Piauí, no posto de tenente-coronel, para o qual foi nomeado.
No entanto, a mais substancial parte da nação guegué continuava nas matas do vale do rio Uruçuí, o que era motivo de queixas dos fazendeiros. As hostilidades eram recíprocas. Por essa razão, durante o ano de 1763, foram tomadas diversas medidas tendentes a organizar tropas e arrecadar alimentação, armas e munições para a guerra que se devia fazer no ano seguinte. Desde então, por quase dois anos foi ação única do governo o combate aos índios guegués, acoroás, timbiras e seus sócios.
Depois de muitas pelejas no ano anterior, somente no final de junho de 1765, João do Rego trava novo contato com esses silvícolas, aprisionando alguns deles. Logo mais, em 3 ou 4 de julho de 1765, manteve novo contato com a principal parte da tribo, celebrando termos de paz, depois de trocarem alguns prisioneiros. O encontro deu-se em umas grutas aclives, na margem ocidental do rio Uruçuí. Tem princípio, então, o descimento[4] para fundarem novo arraial. Eram apenas 434 indígenas. Por aí se vê como foram barbaramente massacrados em 90 anos de contato com os brancos, sendo cerca de cinco mil em seu início. É importante ressaltar que a nova missão deveria ser fundada o mais longe possível de seu habitat, para facilitar o controle dos índios pelas autoridades. Em caso de fuga seriam mais facilmente interceptados. Foi fundado o aldeamento em um terreno situado oito léguas ao norte de Oeiras, preenchendo, assim, os requisitos de ordem geográfica.
Foi em 29 de novembro de 1765, oficializada a fundação da missão de São João de Sende, quando o governador aquiesceu com a escolha do lugar. Desde então foi aberta a clareira das primeiras rancharias e dos primeiros roçados. Principiadas as instalações necessárias foram lançadas ao solo as sementes das primeiras plantações de milho, arroz, feijão, favas, batatas, abóboras, jerimuns e outras semelhantes, porque eram os mantimentos que com maior brevidade poderiam ser colhidos, disse o governador João Pereira Caldas. Enquanto não se colhia o fruto dessas primeiras plantações foram os indígenas mantidos com carnes de gado e cereais à custa da real fazenda, sendo sempre insuficientes para o seu sustento.
O nome do arraial e a invocação do padroeiro foram escolha pessoal do governador, que assim determinou:
“Esse lugar deve ter por padroeiro S. João Baptista, santo do meu nome, debaixo de cuja proteção, quero se estabeleça com a denominação de Lugar de S. João de Sende; e por ela é, que há de ficar conhecido”[5].
João Pereira Caldas pertencia à ilustre Casa de Sende, localizada no concelho de Monção, em Portugal. Não encontrei nos dicionários de língua portuguesa o significado da palavra sende, embora tenha encontrado senda, que significa caminho, atalho, vereda, sendeiro; a palavra sendero tem o mesmo significado na língua espanhola, daí a existência de um grupo rebelde no Peru, chamado Sendeiro Luminoso, que pode ser traduzido como “caminho de luz”. Aqui na região a palavra tem sofrido mutação para sene, bem podendo ser reposta para a grafia original a fim de recuperar o sentido histórico e gramatical.
Esses aldeamentos eram unidades autônomas criadas com índios capturados na forma relatada e estabelecidos em algum ponto da capitania, geralmente distantes de seu habitat, para serem mais bem controlados. Eram administrados por um diretor nomeado diretamente pelo governo, contando com auxílio de soldados. Entre os silvícolas era escolhido um Principal, para representá-los junto às autoridades, inclusive com poder coativo entre os de sua nação. Era também missão religiosa da qual o padre se encarregava pela catequese e conversão ao cristianismo. Era concedido aos mesmos um bom trato de terras, mais tarde definido em uma légua em quadra. Essa conjuntura era regida por um estatuto legal, o Diretório de 3 de maio de 1757. Antes, esses aldeamentos eram administrados pelos jesuítas, porém esses fatos não nos interessam presentemente, uma vez que estamos nos referindo a um período regulado pelo Diretório.
Pois bem, foi seu primeiro diretor o tenente-coronel que os capturou, João do Rego Castelo Branco. Em 1772, foi substituído pelo filho Antônio do Rego Castelo Branco; em agosto de 1776, assumiu a diretoria do lugar o ajudante Caetano de Céa de Figueredo; em julho de 1778, foi substituído pelo cabo-se-esquadra Veríssimo Ferreira de Albuquerque; em janeiro de 1779, assume o soldado João Calisto da Costa; em 10 de outubro de 1780, o cabo-se-esquadra João Rodrigues Seabra; por fim, em 16 de novembro do mesmo ano assumiu como seu último diretor, Raimundo José Nogueira, permanecendo até à extinção do lugar, em 1786.
A catequese religiosa ficou sob responsabilidade de padres franciscanos, porque os jesuítas haviam sido expulsos da colônia desde 1759. Então, em 1768, assume seu primeiro capelão, frei Manuel de Santa Catarina, franciscano, que fora removido do aldeamento do Cajueiro, dos índios jaicós. Somente em 1770, foi concluída pelos índios a casa do padre, construindo-se portas e janelas. Nesse mesmo ano se encontravam envolvidos com consertos da roda e da torre da igreja. Em princípio do mês de fevereiro de 1773, foi esse capelão substituído por frei Francisco Tavares, que viera do Maranhão. Em 1778, esteve catequisando no lugar o padre João Paes Godinho, porém não se demorou. Em 26 de outubro de 1781, chegou ao Lugar de São João de Sende o padre Raimundo Alves Pereira, tomando posse da missão no dia seguinte. Envia correspondência ao governador da capitania dizendo não ter encontrado os paramentos para dizer a missa, nem as imagens e sinos, porque ante a demorada ausência de vigário, o tenente-coronel João do Rego os havia levado para São Gonçalo. Aliás, havia levado também várias fechaduras da casa do dito vigário e da escola, além de outros bens pertencentes ao lugar, tratando-o como se extinto fosse.
Dada essa situação o novo vigário se negou a celebrar a missa enquanto não fossem devolvidos os paramentos. E retornou para a cidade de Oeiras, denunciando que a casa destinada aos vigários se achava em deplorável estado, sem possibilidade de habitação. Então, o governo manda o diretor Raimundo Nogueira recuperar a dita casa e a capela com a maior brevidade possível. Em 30 de novembro de 1782, são devolvidos os paramentos que haviam sido levados para São Gonçalo, em troca de outros que vieram do Brejo de Santo Inácio, que fora dos jesuítas. Com essas diligências, assumiu o padre Raimundo Alves Pereira a catequese dos índios de S. João de Sende, até a extinção do aldeamento.
Conforme o Diretório dos Índios, que era o estatuto que regia os aldeamentos indígenas, em todas as missões deveriam existir duas escolas públicas, sendo uma para meninos e outra para meninas. Ambas, ensinariam a doutrina cristã e o idioma português, sendo vedado o ensino da língua geral, como faziam anteriormente os jesuítas; também, a ler, escrever e contar, como acontecia nas demais escolas; acrescentava ainda que a escola das meninas deveria ensiná-las a fiar, tecer “e todos os mais ministérios do seu sexo”. Porém, dada a carência de mulheres alfabetizadas na colônia para exercer o magistério, até à idade de dez anos as meninas poderiam frequentar a escola dos meninos. Por essa razão, a escola indígena de São João de Sende, funcionou de forma mista sendo seu primeiro professor, Fernandes da Silva Porto. Essa escola teve pouco proveito, sendo esse mestre-escola denunciado pelo padre vigário, de praticar maus-tratos com os alunos, os açoitando e os castigando em um banco de tortura. Em 30 de dezembro de 1769, o governador mandou retirar esse tal banco da escola e lhe autorizou a apenas usar a palmatória no castigo dos alunos. Nesse mesmo ano estava sendo esperada na missão indígena uma mulher alfabetizada, para viver em companhia daquele mestre-escola e ensinar às meninas em uma escola separada dos meninos. Por fim, dada a indisciplina do tal professor, em dezembro de 1771, foi ele afastado, sendo substituído pelo professor Antônio José, um preto forro de reconhecida capacidade que atuava na vila de Jerumenha.
Todavia, além desse sistema educacional existente nas aldeias, existia outro nos moldes profissionalizantes. Neste as crianças e adolescentes indígenas eram cedidos para fora da aldeia mediante formalização de termo a alguns mestres de ofícios mecânicos, com o objetivo de aprenderem alguns desses ofícios. O contrato era feito pelo espaço de seis anos ininterruptos. Porém, na maior parte os jovens retornavam à aldeia sem aprenderem a tal profissão, sendo apenas explorados por mestres inescrupulosos.
Aliás, e exploração da mão-de-obra indígena era comumente explorada pela generalidade dos fazendeiros do Piauí, que utilizavam o trabalho do indígena sob módico pagamento.
Outro aspecto que cumpre ressaltar é a acelerada miscigenação que houve no aldeamento, através de uniões ilícitas entre as mulheres indígenas e homens brancos e negros. Também, de homens indígenas com mulatas e negras, de forma que foi surgindo uma população mestiça em torno dos índios aldeados. Foram líderes indígenas, o índio Manoel de Matos, morador na aldeia de São Félix e, depois, da de São João de Sende, onde foi principal e ajudou em sua criação, sendo grande responsável pelo tratado de paz de 1765. Também, o sargento-mor João Marcelino, que o substituiu na liderança indígena, tendo falecido em avançada idade. Fez várias viagens para Oeiras, São Luís do Maranhão, Minas Gerais e até à corte do Rio de Janeiro, para reivindicar os direitos de seu povo. Foi o último grande líder indígena do Piauí.
A primeira tentativa de extinguir São João de Sende deu-se em 1775. Desejavam removê-los para a foz do rio Poti, onde hoje viceja a cidade de Teresina, mas a ideia não prosperou. Alegavam as autoridades que o solo da região era árido, por cuja razão as lavouras não prosperavam a contento, sendo diminuta a produção agrícola. Em 16 de agosto de 1777, houve nova tentativa de mudança para uma mata à beira do rio Parnaíba, na foz do riacho Mutum, situado quatro léguas abaixo da passagem de Santo Antônio, em cuja região foi fundada a cidade de Nazária. Porém, essa ideia também não prosperou porque os indígenas refugaram dizendo ser o terreno doentio e sinistro. Foi quando nasceu a ideia de os levar para o aldeamento de São Gonçalo. Contudo, o ouvidor Antônio José de Moraes Durão, que presidia a junta de governo, deixou evidente que os mesmos somente seriam transferidos se anuíssem com a ideia.
No entanto, com o afastamento daquela autoridade, no ano seguinte resolveram os membros da nova junta de governo os levarem, à força, para São Gonçalo. Por essa razão, desertam os índios em 9 de julho de 1778, em rumo da Chapada Grande. Em 31 daquele mês já estava contornada a rebelião, sendo conservados os guegués em São João de Sende. No entanto, mesmo a contragosto, foram levados os homens para fazerem roças em São Gonçalo, ficando as mulheres e crianças em São João de Sende, à espera da mudança. Era a situação em dezembro de 1778, quando o governo já noticiava a intenção de brevemente fazer arrematação dos bens de São João de Sende. Insatisfeitos com a mudança, tentavam os guegués aliciar os acoroás para a fuga comum, fato descoberto pelas autoridades, em face da indiscrição dos antigos inimigos da outra nação.
Em execução de seu plano o tenente-coronel João do Rego manda levar o restante dos guegués para São Gonçalo, em 12 de setembro de 1779, provocando grande desgosto em todos os indígenas, que preferiam continuar morando em São João. Essa transferência era ilegal, porque a legislação somente permitia a união de duas aldeias mediante a anuência dos índios aldeados, o que não se verificava. Dadas essas circunstâncias, no Natal daquele ano uma maloca de 50 a 60 indígenas retornou a São João de Sende, queixando-se de que naquela de onde vinham padeciam muita fome. Então, o inspetor João do Rego mandou a São João de Sende, em dias distintos, dois indígenas persuadirem os parentes para voltarem a São Gonçalo, porém, nenhum retornou, ambos permanecendo naquele lugar com os parentes. Como represália, convocou alguns soldados auxiliares que moravam nas redondezas e tomou uma medida insana: a uns mandou que amarassem e prendessem em troncos os guegués que permaneciam em São Gonçalo, para que também não fugissem; a outros, mandou que acompanhassem seu filho Félix do Rego, a São João de Sende, a fim de trazerem os indígenas que para lá tinham retornado.
Em 2 de janeiro de 1780, à frente de cerca de 15 soldados, o ajudante Félix do Rego Castelo Branco estaciona numa chapada próxima a São João de Sende. E manda recado verbal ao diretor João Calisto da Costa, para que juntasse os índios a fim de prendê-los e conduzi-los no dia seguinte. No entanto, este havia recebido ordens para conservá-los naquele lugar, cujas ordens também haviam sido remetidas para São Gonçalo, depois da partida de Félix do Rego. Embora tenha tomado conhecimento de tais ordens naquela oportunidade, Félix do Rego preferiu executar as que recebera do pai. E leva os índios à força, amarrados pelo pescoço em dois libambos de couro cru, sendo os homens em um e as mulheres em outro. De nada valeram os protestos do diretor João Calisto, que, em meio a clima de tensão, ainda tentou impedi-lo, mas só contava com dois soldados.
Foram, assim, tocados pelo caminho que dava acesso à aldeia de São Gonçalo, hoje cidade de Regeneração, sendo espancados no percurso, por cuja razão faleceram três, bastante lesionados. No dia 8 de janeiro, alcançam as margens do riacho Bacuri, que penso ser atualmente o Jacaré. Ali conseguem os indígenas se desvencilharem das presilhas de couro e correm em desabalada carreira para a mata. Perseguidos foram alcançados e mortos quatro, cujas cabeças foram cortadas e levadas em alforjes para São Gonçalo. Expostas em postes para aterrorizarem os demais indígenas, e mostrar-lhes que não adiantava fugir. Em torno do caso houve devassa, cujos autos encontrei, estudei e publiquei. Mas nenhuma punição houve aos criminosos, sendo todos anistiados pelas mais altas autoridades coloniais. Os indígenas é que foram punidos, aqueles que eram julgados mais renitentes, sendo vinte homens degredados para o Maranhão e doze mulheres para o vale do rio Crateús, hoje no Ceará. É este um dos mais tristes e chocantes capítulos da história da colonização portuguesa na América.
Dessa forma, seguiram os guegués divididos nas duas aldeias: São Gonçalo, junto com os acoroás e São João e Sende, somente eles, até o ano de 1786, quando foram todos recolhidos na primeira. Na aldeia mista de São Gonçalo, permaneceram esses infelizes habitantes da América, em meio aos antigos inimigos acoroás, cuja sorte não lhes era diferente. Ali foram definhando em meio à pobreza e maus-tratos. Eram apenas 98 em 1788, contra 67 acoroás, existindo 10 de nação não identificada. Segundo as notas do vigário, no ano de 1819, existiam apenas 120 indígenas em São Gonçalo. Não passavam os guegués de 70, já bastante miscigenados. Ainda eram liderados por seu principal João Marcelino, um índio muito inteligente e resoluto, no dizer dos contemporâneos. Findou-se o aldeamento de São Gonçalo com a elevação do lugar à categoria de vila, em 1832. Com ele também acelerou-se o processo de miscigenação racial. Contudo, o sangue guegué ainda corre por aí, nas veias de muito morador dessa região que medeia de São João de Sende aos confins do Médio-Parnaíba. Esquecido, mas pulsante.
Por fim, resta dizer que as terras do aldeamento, ou “os trastes de São João de Sende”, como está em expressão documental, foram dados ou arrematados em hasta pública pelo tenente Antônio Pereira da Silva, genro do tenente-coronel João do Rego e rico fazendeiro daquele tempo. Foram esses os tristes sucessos desses indígenas, desde os primórdios da colonização ao seu mais completo aniquilamento em meio à miscigenação racial e a pobreza. Enfim, foram essas algumas das eras de nosso passado!
[1] REGINALDO MIRANDA, advogado especialista em Direito Constitucional e em Direito Processual, foi membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI, da Comissão de História, Memória, Verdade e Justiça, assim como cofundador e presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí. Representa a OAB-PI na composição da Comissão de Estudos Territoriais do Estado do Piauí – CETE (17.2.2021 – 31.1.2023). É membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Conferência proferida em 16 de julho de 2022, no povoado São João de Sende, durante realização do IV Festival Cultural, organizado pela Prefeitura Municipal de Tanque do Piauí. Contato: [email protected]
[2] NUNES, Odilon, Pesquisas para história do Piauí. Rio: Artenova, 1975. P. 51.
[3] AHU. Cx. 4. Doc. 231.
[4] Designava-se descimento a saída de uma tribo da mata para a fundação de missões e integração ao grêmio da igreja, enfim, ao mundo colonial português.
[5] Arquivo Público do Piauí. Códice 147. P. 44/44v.