RUBIÃO: COMPAIXÃO OU ÓDIO?

Francisco da Cunha e Silva Filho - especial para Entre-textos

[...] Não, senhor; ele pegou em nada,
levantou nada e cingiu nada;
só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro,
rútila de brilhante e outras pedras preciosas. [...]
Machado de Assis, Quincas Borba
1. Introdução

A fortuna crítica machadiana tem mostrado o vigor da sua obra à medida que passam os anos. Criticado na sua época, incompreendido por Sílvio Romero e por outros exegetas de sua produção, o escritor sofreu injustiças de perspectivas críticas que não estavam preparadas para interpretar a sua ficção avançada para os contemporâneos dele que não conseguiam entender os seus procedimentos narrativos. Sua técnica narrativa e sua visão da vida não reproduziam os cânones deterministas do Realismo ou Naturalismo. Rompendo com a linearidade narrativa, com a natureza do enredo tradicional, com o paisagismo descritivista e com o mito do narrador impessoal, demiúrgico, Machado de Assis, subverteu a narrativa oitocentista e foi procurar o caminho de escritores não alinhados à tradição realista de um Flaubert, Zola ou Dickens.

Seus modelos foram outros e de natureza diferente, considerados como escritores marginalizados, como Sterne, Swift, Fielding. Ou seja, fugindo aos padrões de sua época, Machado de Assis preferiu aqueles modelos de ficcionistas do século 18 cuja maneira de narrar se situava numa vertente sério–jocosa. Esse tipo de escritor entre nós não encontrou a receptividade de nossa crítica de base positivista.

A narrativa de corte realista reproduzindo mimeticamente o drama social do século 19 de forma objetiva, em tom de seriedade ou com prepósitos de denúncia social, se chocava com o estilo de Machado, pontuado de humorismo, de dúvidas, de acentuado pessimismo em relação aos homens e às instituições sociais.

À visão cientificista da vida Machado opôs a relativização dos conceitos e valores. Contra as certezas da ciência, a incerteza, a dúvida, o negacear, da ambigüidade, o enigma. Essa literatura incomodou a mentalidade cientificista as época de Machado de Assis. O filosofema do Humanitismo do romance Quincas Borba é, segundo alguns críticos, uma resposta paródica de Machado ao Positivismo.

O presente estudo propõe analisar três aspectos suscitados pela revolucionária arte narrativa machadiana. Em primeiro lugar, discutiremos, ainda que de forma resumida, a questão de narrador e da narrativa no romance Quincas Borba associando-o à sua matriz narrativa1 Memórias póstumas de Brás Cubas.

Em segundo lugar, desenvolveremos um tópico de extrema importância para a construção narrativa de Quincas Borba, que é o perspectivismo na sua ficção, aspecto ainda pouco estudado na obra de Machado.

Em último lugar, abordaremos uma interpretação do personagem Rubião partindo da premissa de que ele em momento algum deixa de ser um fracassado, sendo, ao contrário, vítima do filosofema do Humanitismo. Mostraremos que é o casal Palha-Sofia que exemplifica o lado dos vencedores;2 no romance os verdadeiros praticantes do Humanismo, como a indicarem encontrar–se esse sistema filosófico não na vontade de adesão a ele, mas na natureza do indivíduo em contato com a sociedade burguesa. Essa troca de papéis entre o personagem Rubião e os outros personagens é responsável pelo caráter de narrativa parodística da ficção em Quincas Borba. Lato sensu, nossa análise pretende demonstrar que a ficção machadiana cresce em importância à medida que uma crítica mais bem teoricamente fundamentada tem revelado a alta qualidade de sua ficção de tal sorte que o nível dela nada fica a dever aos expoentes da literatura ocidental. Prova isso o crescente interesse da crítica estrangeira especializada pela narrativa machadiana, conforme atesta a quantidade de ensaios sobre o escritor brasileiro nos últimos anos.

2. A natureza do narrador e da narrativa

Não consideraremos discrepante ou passível de confundir–se o lugar dos narradores dos romances Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. No primeiro, o narrador é claramente explicitado como sendo de primeira pessoa e ao mesmo tempo personagem protagonista. No segundo, o narrador não é personagem nem conduz narrativa de primeira pessoa, mas de terceira.

A mudança de um narrador de terceira pessoa para um narrador digressivo ou intruso de primeira pessoa como ocorre em Quincas Borba, sabemos, é um artifício assaz comum na ficção machadiana, conhecido como ironia romântica3.

Por conseguinte, não seria discrepância o que observamos no início do capítulo IV, de Quincas Borba, no qual o narrador intruso refresca a memória do leitor para o reaparecimento do mesmo personagem, Quincas Borba, das Memórias póstumas de Brás Cubas. Reforça ainda essa particularidade a inclusão de um bilhete de Brás Cubas dirigido a Rubião dando notícias do falecimento do filósofo Quincas Borba. Não vemos, portanto, como um defeito de técnica narrativa tal procedimento de Machado de Assis. Ao contrário, concordamos com Kaethe Hamburger quando a ensaísta acentua ser a ironia romântica um recurso que antes revigora a ilusão da ficcionalidade, ou como ela ainda pondera: "Os caprichos, os arabescos do narrador necessariamente não obliteram a impressão da realidade".4

Sabemos que as chamadas telenovelas de hoje, que são obra de ficção, folhetins eletrônicos, como já lhes chamaram, não afastam os espectadores por lhes anteciparem informações acerca dos destinos de personagens. O resultado é o inverso, aguça o interesse dos fiéis consumidores.

Quincas Borba mantém um diálogo intertextual constante com Memórias póstumas de Brás Cubas, do qual se origina como universo ficcional, já que o filosofema de Humanistas torna-se uma espécie de força motriz plasmadora da obra.

Não só aquele capítulo sob o título Humanitismo fornece a matéria prima para a constituição do romance Quincas Borba, mas também, em vários passos das Memórias, há textos reiterativos dos princípios do Humanitismo borbiano sintetizados na vitória das mais fortes sobre os mais fracos. Porém, tanto nas Memórias com em Quincas Borba o sistema borbiano prova mesmo ser o que era ironicamente definido pelo filósofo: a filosofia da miséria.5

Visto pela crítica como uma paródia contra o sistema do Positivismo de Augusto Comte, ou mais precisamente, como uma "eclética paródia"6 reunindo evolucionismo, ideologia liberal e credo positivista, o Humanitismo alçou-se, dessa forma, como uma resposta ferina de Machado de Assis contra a geração positivista da Escola de Recife. Combinando, no campo da ficção a teoria (o Humanitismo) e a práxis (os romances Memórias e Quincas Borba) procurou Machado pelo viés da sátira desbancar as panacéias científicas que dominavam a vida intelectual de sua época.

A paródia do Humanistismo, englobando dois personagens diferentes cultural e socialmente, parece querer significar que, independente de diferenças individuais, o indivíduo, submetido à falacia de sistemas filosóficos pretensamentes salvacionistas, não alcançará a felicidade no mundo social. A paródia de Brás Cubas alcança um desfecho trágico. A de Rubião, tragicômico. Dessa tragicomédia de que foi vítima Rubião nos ocuparemos na seção 4 deste estudo.

3. Perspectivismo da narrativa

Pensando dferentemente de alguns críticos, reputamos Quincas Borba como um dos mais bem realizados romances de Machado de Assis7.

Não é porque seja escrito em terceira pessoa que a obra perca em qualidade de construção ficcional. Faltou à crítica tradicional uma penetração mais apurada que só a evolução dos estudos de teoria literária iria permitir vislumbrar, com contribuições decisivas no campo da investigação da narrativa literária, como focalização, autor implícito, narrador, perspectivismo.

A técnica narrativa operada em Quincas Borba provou ser avançada para a época se cotejada com a ficção do final do século 19 e princípios do século 20. Machado de Assis, optando por uma nova forma de narrar uma estória, não submetendo-a ao paradigma da narrativa de orientação evolucionista do Realismo e Naturalismo, foi buscar em fontes mais antigas estratégias ficcionais que combinassem gêneros diferentes de interpretar o universo literário, por exemplo, as narrativas sério-jocosos, onde pudessem delas fazer parte uma multiplicidade de dramatizações ou os recursos de que atualmente entendemos como pós-modernos, como a metaficcionalidade, a carnavalização, a intertextualidade, a polifonia. Estas estratégias, algumas já empregadas em autores antigos, constituem recursos largamente utilizados na ficção contemporânea ocidental.

Provavelmente, por reunir esses traços pós-modernos acima assinalados, a ficção de Machado de Assis foi objeto de interpretações falhas e desaparelhadas, vendo nos últimos romances machadianos defeitos estruturais, como falta de coesão, de nervo ou atmosfera.8

Machado de Assis, assim, pagou um alto preço de ser um autor de vanguarda para a época. Basta dizer que por muito tempo alguns críticos incidiam em grave erro de perspectiva crítica porque ainda confundiam narrador com autor, ou seja, interpretando o primeiro pelo viés biográfico.9 Daí tanto julgamento distorcido sobre obras estudadas. No caso de Machado de Assis, ainda a situação foi pior, porquanto uma série de deformações críticas prejudicaram o autor, sendo uma das mais conhecidas a que diz ser ele um absenteísta político na sua ficção ou alguém que desprezava a classe dos humildes que nem mesmo eram matéria de sua ficção. Felizmente, trabalhos especializados nos últimos anos vêm desfazendo essas distorções na análise da obra machadiana. Tais estudos realizados no país e no exterior vêm descobrindo novos ângulos interpretativos da sua ficção, fazendo de Machado de Assis um dos escritores mais argutos na análise e compreensão da sociedade brasileira do Segundo Império e jogando por terra aquela velha idéia preconceituosa de ser ele um autor reacionário e alheio aos problemas sociais ou só interessado na psicologia dos seus personagens.

A organização do texto narrativo machadiano é permeada da interdiscursividade empregado este termo no sentido que atualmente lhe dão os estudos de análise do discurso.

Caracteriza-se o texto machadiano pelo alto grau de plurivocidade. Machado de Assis não é escritor fácil. Sua leitura demanda um rico repertório do leitor, já que sua textualidade está atravessada de uma multiplicidade de saberes. Seu texto, em grande parte, se constitui de intertextos, exigindo constante trabalho remissivo por parte do leitor. No texto machadiano o autor está em perene diálogo com a tradição literária e com a cultura ocidental no mais lato sentido da palavra.

Dessa forma, ao penetrarmos na narrativa machadiana não esgotaríamos as virtualidades do texto se permanecêssemos apenas na explicitação e identificação de narrador e personagem. É preciso extrapolar a bivocalidade e reconhecer mais vozes na narrativa, i.e., o texto machadiano invade o campo da polifonia.

O primeiro capítulo abre com a voz do narrador em terceira pessoa que, por sua vez, na condição, agora, de narrador intruso, se dirige ao leitor através do recurso da ironia romântica a que fizemos comentário. A voz do narrador adere à do personagem Rubião, seja pela perspectiva por este tomada, seja pela ambigüidade da perspectiva do próprio narrador. Portanto, até aqui depreendemos duas vozes no fluxo da narrativa. O romance, porém, não se cinge apenas a essa visão do narrador e do personagem Rubião.

A partir do capítulo XXI, que é decisivo para toda a trama do romance, em que Rubião trava relações com o casal Cristiano Palha e Sofia, a bivocalidade formada do narrador cede lugar a uma multiplicidade de perspectivas ou de focalização. Aí, então, teremos o ângulo de visão de Palha, de Sofia, de Camacho, de F. Fernanda, do Major Siqueira, de D. Tonica, de Carlos Maria, do diretor do banco do capítulo XCVI, do Teófilo, dos pais de Deolindo. Mobilizando diferentes tipos sociais, o narrador compõe esse painel humano multifacetado representando uma espécie de palco universal, em que cada persona encara papéis que refletem aqueles valores tão caros à ficção machadiana – egoísmo, amor à glória, avareza, ambição e hipocrisia,10 os quais, não podemos negar, reúnem o conjunto axiológico da condição humana, se excetuarmos os santos e os místicos. Talvez por isso é que tantos estudos sobre o escritor levaram a exegeses deformadoras confundindo o conceito de autor empírico com autor textual11e, portanto, atribuindo a Machado de Assis, o homem, uma natureza pessimista ou mórbida, quando, ao contrário, é no enquadramento de suas personae onde encontraremos uma visão pessimista da humanidade. É conveniente ter por princípio na avaliação do escritor o traço nele dominante, que é humorismo. Esta disposição inerente ao humorista de derrouter o leitor12 é que provavelmente tenha resultado em tanto análise equivocada da obra de Machado.

A ensaísta Maria Luísa Nunes,13 em estudo sobre a obra machadiana, refere ser Quincas Borba um romance com narrador contando a estória sob a perspectiva do protagonista central, Rubião. Considerando o texto completo do romance, verificamos que essa conceituação não é absoluta, se consideramos a mudança ocorrida na narrativa da bivocalidade para a polifonia.

O ângulo de visão do narrador não se fixa só em Rubião. Não é só este personagem que nos faz compreender a estória, as ações, os conflitos narrados. Não é só ele o detentor da ideologia do texto. O narrador proteicamente altera o ponto de observação ou da visão de personagens, algumas vezes até de forma não individual, mas coletiva, como se pode ver, no capítulo CLXV, modelo de comédia humana transbordando de tragicomédia. Nesse capítulo antológico percebemos a maestria do romancista fundindo a lição sagrada dos desterrados de Sião com a patuscada da amizade coletiva feita de comensais e bajuladores, de interesseiros e hipócritas que, indiferentes aos sentimentos da solidariedade, sentiam – pasmem – a carência desses encontros habituais. Até mesmo o aparte de um deles, de nome significativamente antitético, Pio, não passava de uma farsa ensaiada com a cumplicidade de mais quatro comensais. A expressão em discurso indireto livre – pobre amigo! é o limite máximo da irrisão. Era o pleno império da carnavalização. A frase do capítulo se incrusta iconicamente como imagem do discurso desconstruído, a negação da afirmação do nada em termos de sentimentos da amizade. Só lhe falta aqui o termo (dis)simulação para completar a rima em prosa mimetizando a afetividade que nunca existira.

4. Rubião: ascensão e queda de um personagem

A travessia tragicômica de Rubião oferece dois aspectos assumidos pelo personagem. Primeiro, uma natureza panglossiana de um personagem para quem a força do capital lhe dava o direito de não conhecer dificuldades materiais, transformando-se em perdulário. No segundo, a figura de Rubião assume um caráter quixotesco combinando a idéia fixa da paixão amorosa não correspondida a um desdobramento de personalidade lamentavelmente cômica.

O projeto de vida de Rubião, após haver recebido a herança de Quincas Borba, visava à vitória sobre o indivíduo, conforme postulava a lição, a princípio, mal digerida do Humanitismo. Um pouco depois, já no capítulo XVIII, o Humanitismo começou a fazer sentido na inteligência de Rubião. "Ao vencedor as batatas" não era mais uma frase vazia e ininteligível, mas o ponto de partida para a experiência e a transformação de vencido em vencedor, transformação que, a nosso ver, não acontece, como mostraremos adiante.

A atitude de lutador e de poderoso assumida por Rubião não passa de uma força aparente. Quando ele parte rico e confiante da província para a Corte do Rio de Janeiro, dá a primeira mostra de fraqueza e ingenuidade demonstradas ao lidar com estranhos. Referimo-nos, no caso, ao casal Cristiano Palha-Sofia, com quem por acaso se relaciona. Nesse momento, Rubião, sem consciência de sua fraqueza, abdicava da filosofia do Humanitismo, porque passa a agir, no embate com os outros, na contramão de discípulo. Nasce aqui o personagem carnavalizado. Para usarmos uma linguagem futebolística, começa a dar gol contra.

A sua inserção num status social e sobretudo econômico não lhe dá a garantia e a segurança de vencedor, condição que nele é apenas, como já frisamos, aparente. A sua decisão de ser inflexível e duro não passa de um desejo retórico que a práxis cotidiana invalida e antes reforça um falso otimismo de arrivista deslumbrado com as facilidades decorrentes de uma herança que lhe caiu do céu, de bens que não conseguiria administrar já que não dispunha de competência nem de visão de homem de negócios. Releva recordar que Rubião já tinha dado mostras de ser um fracassado no mundo dos negócios. Como o narrador no-lo informa: "Antes de professor, metera ombros a algumas empresas, que foram a pique". (Q B, p. 645).

Se Rubião dava demonstrações de ser inábil com questões práticas de lidar com dinheiro, não podemos considerá-lo um indivíduo apenas bisonho ou ignaro para empregarmos um adjetivo que lhe deu o seu mestre Quincas Borba. Rubião não era santo. Ele tudo fez para que a herança lhe chegasse às mãos, cuidando que nenhum fato viesse impedi-lo de consegui-la. Primeiro, com o receio de que ela lhe fosse impugnada em razão da insanidade de Quincas Borba. Segundo, quando o testamento lhe impôs a condição de cuidar do cão, saiu desesperado atrás de Quincas Borba, o cão, do qual já tinha se descartado.

Quem também assegura haver amizade e desprendimento sinceros no provinciano professor que deixou o seu mister para se tornar enfermeiro do tresloucado filósofo, sabendo-se o herdeiro de bens? Não é preciso grande esforço para entender as entrelinhas do discurso do narrador:

Durou o cargo de enfermeiro mais de cinco meses, perto de seis. Era o desvelo de Rubião, paciente, risonho, múltiplo, ouvindo ordem do médico, dando os remédios às horas marcadas, saindo a passeio com o doente, sem esquecer nada, nem o serviço da casa, nem a leitura dos jornais, logo que chegava a mala da Corte ou a de Ouro-Preto.(Q B, p. 645).

A idéia de que pudesse ser incluído no testamento espicaçou-lhe o interesse a partir da ida ao tabelião:

Podiam crer que ele próprio incitara o amigo à viagem, para o fim de o matar mais depressa, e entrar na posse do legado, se é que realmente estava incluso no testamento. (Q B, p. 650).

Ou ainda no mesmo capítulo da citação acima: "Era impossível que lhe não deixasse uma lembrança." (Q B, p. 651).

Ou finalmente, todo aquele trecho desse mesmo capítulo onde Rubião está fixado na idéia do legado dando asas à imaginação acerca do seu real valor.

O capítulo XVIII simboliza a iluminação no destino de Rubião. A lição do mestre num passe de mágica lhe permite a chave da filosofia do Humanitismo. Para trás ficaria a miséria e o sofrimento. Para a frente, a compreensão lúcida e clara da alegoria das batatas. Essa lhe era mais uma herança: a da introjeção dos ensinamentos borbianos somada à herança material. Mattoso Câmara14, ao referir-se ao termo herança, empregou-o também no plural heranças, considerando a dos bens materiais e a da loucura herdada do mestre enlouquecido.

A travessia do Rubião é de um loser, bem na linha de um personagem de paródia. Ele tipifica o inverso do discípulo de Humanitas. Todos os seus gestos e atitudes naufragam no riso e no patético. A sua ascensão é rápida. A grandeza de Rubião se mede pela ingenuidade de sua personalidade, ou seja, também é de pouca duração. Sua figura é patética na medida que as suas ações o tornam vulnerável e presa fácil de oportunistas, como o Palha.

Acompanhemos a ironia do narrador mostrando as reações que ocorrem na fisionomia de Palha cujo interesse pelo interlocutor aumenta à proporção que vai conhecendo aspectos da vida pessoal de Rubião. Para cada confissão de Rubião corresponde um gesto fisionômico de Palha, como segue:

a. Ao expressar o desejo de viajar pela empresa. Pressuposição deduzida da perspectiva de Palha: o sujeito tem posses: "Os olhos de Palha brilhavam instantaneamente" (Q B, p. 658).

b. Ao delegar a Deus a possibilidade de também ele, Palha, empreender uma viagem ao estrangeiro. Pressuposição de Palha: Vai depender da oportunidade surgida com essa nova amizade:

Ah, eu, quando digo que só daqui a anos, acrescento também que a vontade de Deus pode ordenar o contrário. Quem sabe se daqui a meses? A Divina Providência é, que mandou o melhor. (Q B, p. 659)

c. Ao relatar como chegou às mãos dele a herança recebida de Quincas Borba, pressuposição do Palha: A fortuna é certa e líquida. Devo procurar um meio de tirar proveito disso: "Já os olhos deste não brilhavam, refletiam profundamente" (Q B, p. 660).

O andamento do diálogo entre os dois se encerra com uma indagação da parte do Palha sobre o valor da herança, indagação que, simulando discrição e desinteresse, demonstra o intuito de alcançar a verdade do outro.

É demonstração de cinismo a recomendação de Palha pedindo que Rubião não repita a estranhos as confissões que acabara de ouvir dele.

A partir desse encontro fortuito entre Rubião e os Palha o destino de Rubião estava traçado. Sua ascensão chegara ao limite e começava já a despencar. O triângulo amoroso não se completava na realidade, mas na megalomania da cabeça de Rubião se instalou em definitivo. Rubião e as suas pretensões de vencedor ficavam para trás. A cada laço de amizade com os Palha enfraquecia o seu poder de aparente domínio. Toda vez que penetrava no lar do Palha toda a base do Humanitismo perdia sustentação. Isto porque a filosofia borbiana tinha sua verdade demonstrada em direção inversa.

Cada passo dado por Rubião, sob o impulso de estar dominando, era para trás, i.e., quando pensava estar no mundo das delícias da fortuna fácil e ilusória, a sua individualidade ia cada vez mais derruindo.

Aquele sentimento, de posse total de que se viu embuído no primeiro capítulo do romance, lembrando o personagem Paulo Honório de Graciliano Ramos, tinha um fundo falso. O que é pior, ao abrir as portas de sua suntuosa residência a amigos interesseiros, como Carlos Maria, Freitas, os Palha, não estava estreitando amizades, mas sendo por eles usado e até manipulado, como no caso do Palha.

Rubião é um personagem reificado por todos aqueles que dele se utilizaram para tirar proveito financeiro, sobretudo pelo mais abjeto deles, que é o Palha, a ponto de permitir que a própria mulher dele, Sofia, demonstrasse por Rubião sentimentos mais íntimos, posto que dissimulados.

O móvel que a dissimulação afetiva unia Rubião a Palha e a Sofia era o capital. Toda aquela demonstração de gentileza através de gestos, de convites para almoços ou de passeios não passava de simulação.

Uma vez consolidados os negócios através da falcatrua e do engabelamento, aproveitando-se do desinteresse de Rubião pelas questões financeiras, os aproveitadores logo se foram afastando dele. A queda de Rubião significa a ascensão dos Palha. Melhor exemplo do Humanitismo não podia haver.

A descida de Rubião se torna tanto mais trágica porque o personagem perde o juízo e isso se dá no desenvolvimento da narrativa no capítulo CXLV. Podemos também dizer que aí se instala o destino do personagem como paródia. Rubião quer por força mudar o visual. O seu modelo é Napoleão III. Vão-se as barbas de Rubião. Em troca lhe dão a pera, os bigodes, as guias. Vejamos a ironia do narrador assim que o trabalho do barbeiro é concluído: "... era o outro, eram ambos, era ele mesmo, em suma. (Q B, p. 767).

Reduzido à loucura, Rubião precipita a sua condição de vencido. Agora, não apenas de vencido, mas passa a ser objeto de escárnio. O personagem é, desconstruído: perde a fortuna, perde os amigos (com exceção de D. Fernanda e de seu fiel Quincas Borba), perde a sanidade. Rubião é, agora, a imagem da miséria, tal como falava a filosofia do Humanitismo. Todos dele se afastaram. Os Palha são vencedores, ficaram com as batatas. Rubião, com a nossa compaixão ou ódio.

Torna-se pertinente aqui uma comparação Rubião e Brás Cubas, de vez que ambos se fazem discípulos de Quincas Borba. Enquanto Brás Cubas procede de classe abastada, com formação européia, embora com resultados medíocres, Rubião não passava de um professor primário e do interior, sem nenhum brasão. De sua origem nada ficamos sabendo.

Brás Cubas, personagem-escritor, tem consciência reflexiva, mantém certo diálogo com o tresloucado filósofo, ao passo que Rubião é homem de vôo curto, de pouco estudo, de certa forma ingênuo. Há uma frase no romance em que o narrador o define com perfeição:

Rubião era mais que crente; não tinha razões para atacar nem para defender nada: – terra eternamente virgem para se lhe plantar qualquer coisa. A vida da Corte deu-lhe até uma particularidade: entre incrédulos chegava a ser incrédulo (Q B, p. 680-681, grifos nossos).

Ao contrário, Brás Cubas, posto que se revele também um fracassado, é alguém que procurou alcançar um ideal, tinha ambições a despeito de ter um temperamento avaro, egoísta e concupiscente. Desejando ser um homem público realizado, não o conseguiu. Sua adesão à filosofia do Humanitismo fê-lo, a certa altura, escarnecer do sistema do Quincas Borbas. "Vai para o diabo com o teu Humanitismo, interrompi-o; estou farto de filosofia que me não levem a coisa nenhuma" (MPBC, p. 628).

Rubião, por sua vez, tinha em si todas as características do indivíduo fadado ao insucesso. De repente, se viu milionário, despreparado para uma subida de status social a que jamais podia aspirar. Não podendo assimilar essa mudança drástica de mobilidade social, sentiu-se de repente sujeito e objeto da sua herança. Sem estatura psicológica e sem envergadura moral para suportar uma paixão doentia, sobreveio-lhe a demência. Aceitando ser discípulo do Humanitismo, não tinha nenhuma disposição para tanto.

Brás Cubas, tanto quanto Rubião, são dois personagens paradigmáticos dessa espécie de laboratório da ruína, que é o Humanitismo. O Humanitismo, como paródia da filosfia dos vencedores, dos fortes, nos mostra que os adeptos das proclamadas filosofias redentoras não conseguem resolver os dilemas da humanidade, visto que são tragadas pela derrota. O que na realidade ocorre, é uma conseqüência invertida, gerada no absurdo, com um efeito cômico ou tragicômico.

Se o Humanitismo borbiano preconizava a vitória da força sobre os fracos, do egoísmo sobre o altruísmo, a estratégia, parodística do Humanitismo não funcionou para os dois protagonistas analisados, de vez que o que se deu foi o contrário. Daí a sua natureza, parodística, subvertendo o código da linguagem (discurso filosófico substituído intertextualmente pelo discurso literário) e metatextualmente discurso literário sobre discurso literário: O do texto de Brás Cubas reaproveitado intratextualmente pelo de Rubião. Ocorre ainda que, ao lado desse discurso jocoso, parodístico, há o discurso, diríamos, daqueles que o texto silencia, mas obliquamente desvela. Estes, sim, são os adeptos não filiados do Humanitismo, i.e., aqueles indivíduos que compõem a galeria dos vitoriosos, constituídos de oportunistas, de venais e violentos, os Palhas da vida. O Humanitismo, em última análise, equivaleria ao drama da existência, que, afinal, não é feito de boas intenções. Essa é a lição do narrador machadiano e, é bem provável, a de Machado de Assis, sem que necessariamente tenhamos que imputar a este a pecha de pessimista. Seria, antes, mais coerente, no caso desse ficcionista, atribuir-lhe, como já fizeram alguns ensaístas, a condição de moralista15.

5. Conclusão

A análise que desenvolvemos até aqui sobre os aspectos considerados delimitados por nosso estudo nos permite extrair o seguinte:

1. O narrador em Quincas Borba subverte os padrões seguidos pelo narrador tradicional da ficção realista ou naturalista do século 19. Machado não se limita apenas a um narrador de terceira pessoa, mas acrescenta a este um narrador intruso de primeira pessoa. E mais: o narrador intruso tem função relevante na estrutura da narrativa porquanto se articula faticamente com o leitor, quer fictício, quer virtual16. Essa relação criada pelo texto narrativo entre narrador e leitor visa, pelo menos, a dois objetivos: a) fazer o leitor entender que o texto não passa de uma estória imaginada (autiilusionismo); b) estabelecer com o leitor um canal aberto à discussão ou participação na matéria narrada, seja no que concerne à forma do romance (metalinguagem), seja ao direcionar o leitor para as implicações ideológicas da estória, i.e., para o discurso metaficcional.

2. A narrativa em Quincas Borba vai do recurso bivocal (narrador + personagem Rubião) para a polifonia, ou seja, a outras vozes se delega o ponto de vista da narrativa. O resultado é possibilitar ao leitor virtual a apreensão de um amplo e diversificado universo de subjetividades, de visões de discursos e registros lingüísticos, tanto quando forem os tipos humanos desenhados pela narrativa.

Essa flexibilização de vozes faz do romance um mosaico de registros lingüísticos, como aquela citação de um artigo de Camacho – verdadeira paródia da linguagem político-partidária de cunho jornalístico, inçado de frases em latim17.

3. Rubião é uma vítima do Humanitismo borbiano. Seu projeto de vida tinha por meta o sinete dos fortes, do domínio sobre os outros. Entretanto, o que ocorreu foi o inverso. Quando imaginava deter o poder era por este subjugado. Sua megalomania, seu sentimento amoroso frustrado e insano fazem do personagem uma paródia com final tragicômico.

Machado de Assis atingiu duplamente a fragilidade dos sistemas filosóficos que se propõem como curas para a felicidade e paz da humanidade. Parodiou o Positivismo comtiano pela via do universo ficcional, elaborando um metatexto em forma de paródia e, para desqualificar ainda mais seu ataque, inventou magistralmente Rubião – o exemplo mais acabado da filosofia da miséria.

 


Referências bibliográficas

1. As idéias de matriz narrativa bem como as de bivocalidade e polifonia foram aqui retomadas da temática do curso sobre a ficção e a crônica de Machado de Assis ministrada pelo Professor Ronaldes de Melo e Souza, sob o título Perspectivismo narrativo de Machado de Assis (Faculdade de Letras, UFRJ, 1o semestre de 1998).

2. A nossa visão acerca da função do personagem Rubião no desenvolvimento da narrativa coincide com a de Thiers Martins Moreira. Ver desse autor o ensaio Quincas Borba ou o pessimismo irônico. Livraria São José, 1964.

3. Ver o comentário de Maria Luisa Nunes em The craft of an absolute winner (1983), p. 66.

4. HAMBURGER, Kathe, citada por NUNES, Maria Luisa (1983), op. cit., p. 65.

5. A expressão está em ASSIS, M. de (1977), p. 574. As citações dos romances Quincas Borba e Memórias póstumas de Brás Cubas são extraídas da Obra Completa de Machado de Assis, edição da Nova Aguilar. As siglas que aparecem nas citações (Q B e MPBC) correspondem, respectivamente, àqueles dois romances.

6. VENTURA, Roberto, citado por MAGALHÃES, Maria do Socorro Rios, em Literatura piauiense – horizontes da leitura e crítica literária (1900-1930). Teresina (Pi.). Fundação Monsenhor Chaves, 1998, p. 406.

7. A nossa discordância se prende ao comentário crítico citado na nota 2 de NUNES, M. L. (1983), op. cit., p. 85.

8. Idem, ibidem, p. 85-86.

9. CÂMARA, Mattoso (1962), p. 97. É digno de registrar aqui que o renomado lingüísta brasileiro já distingue com argúcia a separação entre autor e narrador, antecipando conceito de narratologia como autor empírico, autor textual, narrador.

10. NUNES, M. L., op. cit., p. 78.

11. Empregamos esses dois conceitos de narratologia nas acepções que lhes atribui Vítor Manuel de Aguiar e Silva, embora reconhecendo ser complexa e, muitas vezes, movediça a terminologia nesse campo de investigação teórica. Ver do autor Teoria da literatura. Coimbra. Almedina, 1984, p. 220-231. Ver também o capítulo O romance, p. 671-786.

12. CÂMARA, M., op. cit., p. 97

13. NUNES, M. L., op. cit., p. 75

14. CÂMARA, M., op. cit., p. 76

15. PRADO COELHO, J. do. (1973). Ver verbete Quincas Borba, p. 901-902, Dicionário de literatura, 2 vol. LIS. Porto. Figueirinha, 3. ed.

16. Utilizamos esses conceitos de Gérald Prince no sentido em que estão explicitados por Roland Bourneuf e Réal Ouellet na obra O universo do romance. Coimbra. Almedina, 1976. Cf. Nota de pé de página n. 1, p. 99-100.

17. ASSIS, M. de., op. cit., p. 737-738

 


Sumário

Este trabalho analisa três aspectos do romance Quincas Borba, de Machado de Assis. Primeiro, evidencia um recurso inovador de técnica narrativa, misturando narrador de terceira pessoa com um narrador intruso de primeira pessoa, agindo este como "ironia romântica". Em segundo lugar, o trabalho revela uma outra técnica narratológica, a troca, no desenvolvimento da narrativa, do bivocalismo para a polifonia. Por último, o estudo considera o personagem Rubião como vítima do Humanitismo, sendo sempre um perdedor e nunca um dominador. Essa peculiaridade dele faz um herói tragicômico.

 


Abstract

The work analyses three aspects of the novel Quincas Borba by Machado de Assis – Firstly, it shows the innovative resource of mixing up a third person narrator with an intruder first person narrator, the latter functioning as "romantic irony" in the story-telling process. Secondly, the study unfolds another narratology technique, which is the change in the same story from bivocalism to polyphony. Thirdly, the study considers Rubião, as far as character analysis is concerned, the victim of Humanitismo, never being a winner but a loser all through the novel. This peculiarity makes him at one time a comical and a tragical hero.
 

  Francisco da Cunha e Silva Filho  é doutor em Literatura pela UFRJ