Cunha e Silva Filho


                        A Rua Arlindo Nogueira, zona sul de Teresina, uma vez numa tentativa de fazer poesia, chamei de “rua da adolescência. O curioso é que essa rua tinha a sua entrada principal pela Rua São Pedro. Entrada com murinho. A porta, um espécie de hall a céu aberto, mas não se ornava de um belo jardim, desses que os ingleses tanto prezam e deles cuidam com alma e corpo, provavelmente seguindo monarquicamente os princípios de desvelo, de amor e proteção manifestados no provérbio ”My home is my castle.” No entanto, aquela entrada, na prática, desvia-se de sua função, que seria o lugar de atender às pessoas ou visitantes que por lá surgissem. 
                     A  verdadeira  ”entrada” dava-se pela Rua Arlindo Nogueira, rua simpática não tão estreita, rua longa que, do lado da zona sul, se estendia por muitas esquinas até se perder do meu alcance. Para o lado em direção à zona norte, ela se prolongava até praticamente a praça do Mercado Novo, local em que havia residências, a Faculdade de Direito, o Colégio Demóstenes Avelino (do professor Felismino Weser) e, nessa direção, até chegar àquela praça ou largo, se passava pela lado lateral do Colégio da Irmãs, onde minha mãe, estudou na infância ou adolescência. Dois irmãos mais velhos e eu estudamos, por pouco espaço de tempo, no Demóstenes Avelino, e a única lembrança boa que ainda tenho dele era a merenda que mamãe, à hora do recreio, nos levava com aquela boa vontade e cuidados maternos. A merenda de mamãe era sempre bem aguardada e ainda me lembro que consistia mais de frutas, por exemplo fatias de deliciosa melancia. Que delícia! Ainda sinto o sabor doce daquelas melancias de mamãe. O tempo é sinestésico, não há dúvida.
                 A entrada pela Arlindo Nogueira tinha uma porta que dava de imediato para uma ampla varanda, onde mamãe dispunha o mobilliário. O piso não era de taco, mas de tijolinhos. Me recordo que taco só havia na casa de meus amigos burgueses, assim como geladeira , telefone e outras utilidades do conforto da época. Um fato de vulto é que, naquela época, meados dos anos cinqüenta, a porta principal da casa permanecia aberta durante o dia, a não ser quando  não se deixava  ninguém em casa.
               A casa era ampla, compreendia quatro quartos e ainda tinha um quarto de tamanho razoável que dava pra  rua, como se fosse uma sala onde se pudesse destiná-la para um pequeno comércio. Este quarto não tinha janelas, só portas,, que davam tanto para a Rua São Pedro quanto para a Arlindo Nogueira.. A casa era  alugada de um conhecido de papai, gente de Amarante. O que havia de melhor da casa eram os dois quintais, separados um do outro por um muro com uma entrada. Daí que, vendo os dois quintais do lado da Arlindo Nogueira, concluía-se que a casa exibia um muro bastante comprido. A construção para a época era sólida , bem pintada por fora e por dentro. Podia-se afirmar que era uma casa bonita e acolhedora. Ia-me esquecendo que havia, no primeiro quintal, um pé de árvore, não sei se de goiaba, não me lembro mais. No segundo quintal, me lembro  de que o terreno era bom para se plantar, por exemplo, milho. E, uma vez, plantou-se milho, que cresceu bem.  Nesse segundo quintal, mamãe colocava algum as galinhas, que se escondiam pelo mato pequeno em torno.      

            Havia um dado que me serviu de balizamento entre a infância e o desenvolvimento da a adolescência. O muro que divida os quintais usava muitas vezes para saber o quanto tinha crescido de altura. Ficava feliz quando minha  cabeça ,encostada ao muro, me indicava que estava mais alto e quase o ultrapassando. Era uma gesto simbólico que me dava prazer de me sentir já rapazinho crescido , da altura do muro. Era isso o sinal da passagem do tempo e das mudanças físicas e intelectivas. Me sentia radiante quando sabia que minha altura se igualava à do muro. “Meu Deus, estou crescendo, vou deixar de usar calça curta. Os hormônios fervilhavam com toda a força da idade e dos sentidos da carne.
           O que mais me marcou durante o tempo em que morei naquela casa era uma janela de um dos dois quartos que davam para a Arlindo Nogueira. Essa janela se confunde com a minha passagem da infância para a adolescência. Ela, com o tempo que ali passei, se me tornara uma forma de eu ver quase todo dia, depois de voltar da escola, a rua. Nada me agradava mais do que ficar olhando para a rua e ver a passagem das pessoas no vai-e-vem dos transeuntes, dos carros, carroças, vendedores de rua ( ó famosas cuscuzeiras anunciando, de manhã, seu cuscuz inimitável no delicioso sabor de seu preparo, nos seus segredos de poder prepará-lo como ninguém o podia fazer de forma caseira, ainda que gostasse do cuscuz de mamãe. Mas, o cuscuz daquelas vendedoras de rua me fascinava, assim como a papai, mamãe e a todos os meus irmãos. 
           Quando aquelas mulheres traziam, equilibrando o tabuleiro nas rodilhas das cabeças, o gostoso cuscuz teresinense: “Olha o cuscuz! Olha o cuscuz! – gritavam elas certas de que a vizinhança iria comprá-lo em talhadas branquinhas como neve ,quentinhas, saborosíssimas. Mas, não se confunda esse cuscuz teresinense com o baiano. Ele é feito de massa de arroz ou de milho, temperado com água e sal e comido especialmente no café, servido com manteiga. Esse cuscuz é irresistível. Não contém coco e tapioca , como o da Bahia, que não chega aos pés do de Teresina. “Mamãe, por que a senhora não faz o cuscuz do jeito das cuscuzeiras da rua?” “Meu filho, elas têm uma segredo que não passam a ninguém. Esse segredo - é claro – não poderiam elas revelar, pois dele dependia o gosto maravilhoso da textura , da aparência, da forma de preparo, da quantidade de sal necessária ao sabor especial. Não sei mais se ainda em Teresina se veem essas mulheres do cuscuz, verdadeiras fadas que  preparavam o mais gostoso cuscuz do mundo.
           Da janela da Arlindo Nogueira aprendi a ver as meninas mais lindas de Teresina e não me intimidava lhes dar um olhar mais ousado. As meninas que passavam pela Arlindo Nogueira hoje são senhoras sessentonas, bem ou mal casadas, avós e talvez agora mais cuidando de netos. Como era bom trocar olhares com algumas delas que me correspondiam ao sorriso ou até a algumas palavras de galanteios. Por isso, ao ir para a “minha “ janela, me esmerava na aparência. A janela funcionava também como uma forma de eu observar uma variedade de pessoas que pela rua passavam, geralmente de volta para as suas casas. Gente de todas as idades. Alguns rostos já se me tornavam conhecidos. Algumas me cumprimentavam, Outras, não. Eu, porém, as conhecia. Sempre fui uma pessoa que mais conhecia os outros do que era conhecido.Gosto de olhar como as pessoas são, no físico ou no que me transmitem espiritualmente.
        Retomo, porém, a casa da Arlindo Nogueira e um outro aspecto daquele período de vida me força a memória. Foi naquele quarto que dava para as duas já citadas ruas em que comecei a me preparar para o prazer e os sacrifícios de escrever. Foi naquele quarto que comecei a sentir um chamado à vida literária, à vida dos livros e das leituras que não mais se largaram de meus hábitos. Me lembro de que naquele quarto eu tinha uma mesinha de estudos e nela escrevi, num caderninho escolar( onde andará ele?), alguns textos cujos assuntos primeiro relacionava, para, depois, desenvolvê-los. Cheguei a encher todo um caderno. Os assuntos eram os mais variados: a pátria, a escola, os estudos, a poesia, a paz, a guerra, a família etc., etc. Aquele exercício de escrita era uma forma de me exercitar na composição. Não eram exigências escolares. Eu próprio os escrevia para mim mesmo.

            Naquela época, lá em casa, havia dois espaços, o da biblioteca de papai e o meu quarto de esquina. Nos dois se deu o meu encontro para a vida e para o sonho, para o “feijão e o sonho”, melhor diria. Eu estava com quinze anos e, um ano após, já me atrevia a escrever pros jornais levado pela mão e incentivo paterno. Me lembro de que um conhecido da minha idade uma vez me confidenciara que uma pessoa da família dele não gostava do que eu escrevia. Era pura inveja.. Fiquei tão indignado que escrevi um artigo de titulo “A crítica dos críticos”, um longo artigo que nunca foi publicado, no qual desancava o meu opositor invejoso e maledicente. Talvez, desse artigo indignado tenha se originado o meu lado ensaístico e sobretudo critico. Nunca fui bom de briga física, mas não perdoava meus detratores, sobretudo quando neles via unicamente o sentimento subalterno da inveja e do despeito.