Um dia ela acordou decidida: ia fugir.
Estava cansada das cobranças, dos gritos já de manhã cedo e das imposições. Não aguentava mais ser empurrada, dirigida, controlada. Ela não tinha vontade ou desejos. Toda a vez que tentava se impor, ouvia sempre a mesma frase: “Você não sabe de nada!”. Era simplesmente de enlouquecer!
Agora, deitada na cama, nessa manhã fria, tinha decidido: ia fugir.
Mentalmente começou a fazer um inventário rápido do que precisava levar. Duas calças jeans para ocasiões informais e duas calças de crepe caso fosse convidada para alguma festa. Não podia esquecer de levar blusas combinando, em especial, aquela branca, com gola chinesa, que podia ser usada em qualquer situação. Ah, os sapatos! Precisava de pelo menos quatro pares diferentes: dois abertos e dois fechados. E tênis? Decidiu que iria abrir mão deles. Afinal, algum sacrifício era necessário se desejava ser livre, sem contar que nunca se sentiu bem usando tênis, eles não a deixavam elegante.
Estreitando os olhos, lembrou de outras peças importantes para pôr na mala. Calcinhas e sutiãs variados. Um casaco curto e outro longo. Meias. Talvez um ou dois biquínis.
Espreguiçando-se, sentiu-se mais tranquila, mais senhora de si. A decisão de fugir tinha lhe feito bem.
Eles iam ver, pensou. Quando dessem por conta, ela teria sumido e, só para deixá-los mais nervosos, não escreveria nem mesmo um bilhete. Gostaria de poder ver a cara deles quando encontrassem o quarto vazio. Se ela não sabia nada, eles com certeza ficariam satisfeitos em verem-se livres dela.
Sem querer, ficou triste com esse pensamento. Será que eles a tratavam com tanta desconsideração porque queriam vê-la longe? Nunca havia pensado sob esse ângulo. Ah, meu Deus! Então era isso! Ela tinha se tornado um estorvo, uma chateação.
A felicidade rapidamente se evaporou, sendo substituída pela mágoa de se acreditar pouco amada. Secando uma lágrima teimosa que resolveu escorrer pelo seu rosto, voltou a se concentrar na bagagem para a fuga.
Dinheiro, é claro! Como podia ter esquecido! Precisaria dele enquanto não encontrasse um emprego. Imediatamente lembrou-se das suas economias. Estava pensando em usá-las para comprar aquele vestido de alças que havia experimentado naquela loja do shopping. Ele tinha ficado perfeito nela. Perfeito! No entanto, esse era outro sacrifício que teria de fazer. A fuga agora era o mais importante. Sem dúvida nenhuma! Mas o vestido era tão lindo, suspirou melancólica.
Enquanto refletia em como equacionar esses dois problemas – fugir ou comprar o vestido dos seus sonhos –, ouviu um trovão e depois o barulho da chuva batendo no vidro da janela. E agora? Como fugir com um tempo desses? Precisaria de uma capa de chuva.
Estava de olhos fechados tentando reorganizar o que levaria na mala quando escutou alguém abrindo a porta. Ficou absolutamente imóvel, fingindo dormir.
O “alguém” aproximou-se da janela e ela pode escutar o barulho do trinco sendo testado. Em seguida passos vieram em sua direção. Ela continuou sem se mover.
Agora “alguém” estava ao seu lado.
Ainda de olhos fechados sentiu seu cobertor sendo puxado para cobri-la melhor e a carícia de uma mão macia e quente em seu rosto e cabelo. Por fim, quando ela já não aguentava mais, “alguém” a beijou com carinho na testa.
Quando a porta foi fechada ela soube que não poderia mais fugir. Afinal, talvez eles a amassem. Talvez ela não fosse um estorvo. E talvez – com relutância admitiu – ela realmente não soubesse muita coisa.