Rogel Samuel: O quadro branco
Por Rogel Samuel Em: 09/10/2010, às 04H09
O quadro branco
Rogel Samuel
De Walmir Ayala releio um poema, intitulado «Estação», a que sempre volto:
Na geladeira as frutas
escurecem de mortas
O quadro a geladeira as frutas mortas geladas de morte, natureza morta, alma morta, amor morto. Nessa da geleira de um Himalaya morto, neste Instituto Médico Legal da autópsia do pomar,
as peras são secretas
usinas de água doce,
E dentro das peras há uma fonte a suculenta feminidade, a pose de ovário e úvula, a complexidade singela, a sua capacidade de oferta, de entrega, de lamúria, fonte de águas mortas, internas, com entraves de pântanos doces das almas líquidas partes da natureza do amor, das estivais qualidades da natureza das carícias do corpo úmido, dos corpos entregues a si mesmos, que é quando partes do mais tátil amor que se dá às mãos que deles fazem seus prazeres e saberes e mergulhos, nos gozos internos e usos, no segredo do maior e cavernoso introduzir hipodérmico da sua capacidade de sentir e de pulsar. Que é? A água doce do amor, a usina do impulso amoroso. São os líquidos doces, langorosos, das umidades humanas.
um mamão decepado
mostra a íntima carne
O mamão, macho, masculino castrado amputado, calado, prostrado, exibindo entranhas estranhas, carne devastada, intimidade devassada, o porte guilhotinado em bastilhas vasilhas sobremesas - mamão revolução estraçalhado carne vegetal gengiva mole e aberta.
e as goiabas oloram
seu verão serenado.
O cheiro das goiabas, o perfume do verão no inverno do refrigerador, em antífrase feliz as perfumadas açucaradas e brandas goiabas. O verão olorizado de sereníssimo repouso. Oferecidas ao seu saboroso cheiro do pomar tropical.
Mas são mortas e lentas
neste ofertório as frutas.
Que está morto, tudo está congeladamente morto, com frieza mortal da morte lenta, da morte eterna, mumificada, gelada, branca, da porta aberta da geleira tumular, este ofertório poético.
Um vapor congelado
contorna seu mistério.
Envoltas no nevoeiro, no seu mistério frio, branco, hospitalizado, as obscurecidas frutas medicalizadas, no branco arrepio da poesia misteriosa, do mistério da poesia...
E elas posam no ardor
do branco cemitério
de seu grave pomar.
Crítico de arte era o poeta Ayala que abre, no seu cemitério doméstico e culinário, a escrita de seu receituário de forno e fogão, na gravitação polar tematização estival (e não outonal), bosque enclausurado.
E a geladeira inventa
surdo primaverar.