Revoluções e novos autores árabes

Fernando Duarte, de Londres

 Diante da bravura de homens e mulheres que saíram às ruas para enfrentar alguns dos regimes mais opressores do mundo e das consequências geopolíticas da queda de ditaduras como a de Muamar Kadafi na Líbia, as oportunidades culturais abertas pela Primavera Árabe são um assunto compreensivelmente relegado a um segundo plano. Inegável, porém, é que os levantes populares que desde o final do ano passado têm ocorrido no Norte da África e no Oriente Médio tam$ém atraíram mais atenções para a produção literária da região, anteriormente despertadas pela invasão e subsequente guerra civil no Iraque.

Segundo um levantamento da “Banipal”, uma das principais revistas literárias árabes publicadas em inglês, o número de obras contemporâneas traduzidas no mercado geral saltou de apenas duas em 1999 para 32 em 2010. E autores da região há quatro anos contam com o Ipaf (International Prize for Arabic Fiction), o único prêmio internacional considerado independente o suficiente das amarras dos muitos déspotas de plantão,para chamar a atenção das editoras ocidentais — este ano houve mais de 100 inscrições. Escritores ouvidos pelo GLOBO, porém, admitem que a vitrine nunca foi tão grande como agora.

— Nunca dei tantas entrevistas como nos últimos meses ou recebi tantos convites para palestras. Se existe um momento ideal para promover autores desconhecidos, ele chegou. Especialmente agora que as pessoas no mundo árabe estão perdendo o medo de se expressar — afirma o poeta e escritor líbio Ghazi Gheblawi, radicado em Londres, já em negociações para a tradução dos dois livros de contos e de uma versão em inglês para o“Imtidad”, um dos mais conhecidos podcasts culturais do mundo árabe.

Diáspora e tecnologia influenciam a produção

Ghazi Gheblawi e colegas nem precisam gritar muito. A julgar pelo festival de eventos ligados à Primavera Árabe promovidos pelas principais feiras literárias europeias nos últimos meses, a oportunidade é evidente para um mercado em que casos como o do também líbio Hisham Matar, que escreve diretamente em inglês (“No país dos homens” foi publicado aqui em 2007 pela Companhia das Letras), ainda são exceção à regra. E, para muitos autores, o reconhecimento internacional representa também a chance de promover um trabalho muitas vezes censurado em seus próprios países.

— Estimular o debate e a controvérsia é do que precisamos no mundo árabe. Nas últimas três décadas mostramos indiferença em relação à criatividade das pessoas. O cenário, porém, agora está mudando — conta Raja Alem, cujo romance “O colar da pomba” foi um dos vencedores da edição de 2011 do Ipaf (numa inédita vitória feminina), embora ainda tenha venda proibida na Arábia Saudita, seu país natal.

É importante notar que a literatura árabe nem de longe é novidade para leitores ocidentais. Na década de 20, por exemplo, as primeiras edições de “O Profeta”, do libanês Khalil Gibran construíram o que se transformou na mais do que respeitável marca de terceiro mais vendido poeta da História, atrás apenas de Shakespeare e do chinês Lao Tzu. E, em 1988, o egípcio Naguib Mahfouz (publicado no Brasil pela Record e Companhia das Letras) ganhou o Prêmio Nobel, no que até hoje foi a primeira e única vez em que a honra foi concedida a um árabe.

Por causa dos ecos das revoluções recentes, aliás, o poeta sírio Adonis, sempre cotado para ganhar o Nobel, esteve entre os primeiros lugares nas listas de apostas para o prêmio deste ano, que foi concedido ao sueco Tomas Tranströmer na quinta-feira. E o palestino Mahmoud Darwish, morto em 2008, ainda é descrito como um dos mais importantes poetas contemporâneos árabes. No entanto, no caso da ficção, críticos ocidentais tinham em comum a queixa de que as obras baseavam-se majoritariamente nos padrões do realismo social e num certo paroquialismo.

Obras com novos pontos de referência

Os tempos agora são diferentes, a começar por uma diáspora que levou diversos árabes para cantos mais democráticos do mundo, passando pela revolução tecnológica nas comunicações que torna a produção e transmissão de informações menos sujeitas à vigilância dos censores. Temas e pontos de referência também se alteraram. Raja Alem, por exemplo, descreve o extremismo religioso e a exploração de mão-de-obra $por aristocratas na cidade sagrada de Meca. Maryam al-Saedi, dos Emirados Árabes, cutuca a ganância despertada pelas receitas bilionárias que o petróleo trouxe para regiões como Abu Dhabi e Dubai. Rajaa Alsanea foi censurada na Arábia Saudita por falar abertamente da realidade das mulheres sob a opressão religiosa.

 

O surgimento de autoras, por sinal, é outro reflexo das rebeliões árabes, como ex$a egípcia Ahdaf Soueif, que participou da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2007, quando lançou “O mapa do amor” (Agir). Para ela, a dose de coragem está sendo especialmente sentida pelas mulheres árabes:

— Movimentos como a revolução egípcia foram marcados pela participação feminina. E muitas mulheres no mundo árabe agora se sentem encorajadas a se fazer ouvir — $a escritora, por telefone, do Cairo.

O mercado será inundado por histórias sobre os recentes acontecimentos, incluindo trabalhos de ficção. Há esperança também numa diversificação em termos de idade, uma tendência que já vinha despontando em 2009, quando a editora inglesa Bloomsbury publicou uma coletânea de 39 contos, extratos e poemas de 39 autores árabes menores de 40 anos, vencedores $um concurso promovido pela “Banipal”. Um trabalho que inspirou nomes como o líbio Mohammed Mesrati, de 21 anos, para quem jovens escritores árabes agora contam também com a ausência do espectro da repressão:

— Uma geração inteira da literatura do meu país foi encarcerada por Kadafi nos anos 70 e as gerações subsequentes tinham medo do regime. As coisas certamente são diferentes agora.

Publicado originalmente no Prosa e Verso.