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RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA
(Os três primeiros sonetos)

Rogel Samuel

O tema é banal, é vulgar. O tema é a mãe, tema já tão gasto pelo tempo dos cadernos poéticos e saudades. Todos nós tivemos ou temos, uma mãe a saudar, a lembrar, a louvar.

Mas Tufic é um poeta excepcional: Realizou sua obra-prima. Sonetos pós-modernos em que ele traça o perfil, o “Retrato de mãe“, de sua verdadeira mãe.

O livro todo está no blog
http://historiadosamantes.blogspot.com/search/label/JORGE%20TUFIC

O livro é uma obra-prima em quinze sonetos. E começa por uma invocação:

Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.
Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer mediterrânea esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.
Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.
Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios

Invocada, a mãe começa a delinear-se, começa a aparecer, nítida, forte, sim, ele começa a pintar o retrato interno da dulcíssima Mãe que logo todos nós assumimos, conjuntamente, nossa mãe síntese e simbólica, fonte, semente e nome de nossa vida, que tudo nos deu.


E neste segundo soneto logo aparece um mistério: Quem será este desconhecido Ramón que aparece no penúltimo verso? É D. Ramón Angel Jara, Bispo de La Serena, Chile, citado no pórtico do livro.


A descrição, o retrato começa pelos cabelos, as tranças, a voz, a lembrança.


Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.

Depois vem a casa, a cozinha, a Mãe prepara comidas da culinária libanesa, a lentinha, o azeite, as cebolas fritas, a coalhada, o pão redondo, tudo isso passou.

Ao redor da casa, o vento. Também passa. A cerca do quintal, os vizinhos, as vozes cantam, e passaram. O que passa é o calendário sem datas, o chão do passado, o que passa, mas volta agora.


Lentilha, azeite doce, o acebolado
chia na frigideira de alumínio;
a casa está repleta de convites
para a janta frugal e acolhedora.
Nos arredores brinca o vento: a cerca
divisória, talvez, nada separa.
Vizinhando quintais vozes fraternas
cantam, mandam recados de ternura.
Assim te vejo, mãe, rosto suado
na lida da cozinha ou pondo a mesa.
Terrinas de coalhada, o pão redondo
a recender de ti, mais que do trigo.
Calendário sem datas, chão de outrora,
como tudo passou se tudo é agora?