Reportagem especial - Mário Faustino: hermetismo, rigor e o desafio da leitura poética
Em: 21/12/2025, às 18H04
[Lívia Maria – reportagem especial de Entretextos]
Poucos poetas brasileiros despertam tantas leituras divergentes quanto Mário Faustino. Morto precocemente, aos 32 anos, o autor de O homem e sua hora costuma ser apresentado, não raro, como um poeta “difícil”, “hermético”, destinado a poucos iniciados. Mas até que ponto essa imagem corresponde à sua poética? E em que medida ela contribui para afastar leitores em vez de convidá-los ao encontro com a poesia?
Para o poeta e cientista político Ranieri Ribas, o rótulo de hermetismo, embora não seja totalmente infundado, precisa ser relativizado. Faustino, segundo ele, não é mais hermético do que outros nomes centrais da tradição literária ocidental.
“É tão hermético quanto o Drummond de Claro Enigma, o Fernando Pessoa dos poemas rosacrucianos ou o Jorge de Lima de Invenção de Orfeu”, afirma.
Professor Ranieri Ribas
O ponto central, para Ranieri, não está na suposta obscuridade do poeta, mas no repertório estético do leitor. Ler Faustino exige o mesmo esforço que ler Dante: atenção, paciência e releitura. A dificuldade, nesse sentido, diz mais sobre os limites do leitor contemporâneo do que sobre os limites da poesia.
“As últimas gerações, com seus smartphones, seu culto ao entretenimento fácil e seu horror ao ‘textão’, certamente terão muitas dificuldades não só com a poesia, mas com qualquer texto que exija dedicação.”
Já o poeta e crítico literário Sérgio de Castro Pinto desloca o debate para outra direção. Para ele, Mário Faustino não é propriamente um poeta hermético, mas um poeta requintado, de elevada consciência formal e intelectual.
“Foi o mentor de toda uma geração que se abeberava na fonte perene do saber que jorrava de sua coluna Poesia-Experiência, no Jornal do Brasil.”
Escritor Paraibano Sérgio de Castro Pinto
Sérgio ressalta ainda que, apesar da morte prematura, Faustino deixou uma obra sólida e duradoura. O homem e sua hora, segundo ele, é suficiente para assegurar ao poeta um lugar definitivo na história da literatura brasileira.
É nesse ponto que se insere o olhar do poeta e crítico literário paulista Cláudio Daniel, que chama atenção para a diversidade estética da obra faustiniana e para sua evolução formal. Segundo ele, a poesia de Mário Faustino dialoga inicialmente com a tradição medieval dos trovadores e com a lírica renascentista, explorando formas clássicas como o soneto, a métrica regular e as rimas, sempre em busca da palavra exata, da precisão e da objetividade.
“É possível ler sua poesia sem dificuldade, se temos o repertório mínimo para a compreensão das formas clássicas e, claro, o gosto pela leitura de poemas bem elaborados.”
Poeta Cláudio Daniel
Cláudio Daniel destaca ainda que, em sua última fase, Faustino — contemporâneo da Poesia Concreta — passou a experimentar recursos de vanguarda, como a elipse, a parataxe e a espacialização dos versos. O poeta, que morreu em um acidente aéreo quando seguia para Cuba para entrevistar Fidel Castro como jornalista profissional, buscava escrever um poema longo moderno, projeto interrompido pela morte precoce.
“É um poeta fascinante que merece contínua releitura e estudo”, conclui.
A leitura mais radical e simbólica do hermetismo vem do poeta e crítico Daniel Glaydson, que recupera o sentido originário do termo: aquilo que é cifrado porque nasce do diálogo entre o humano e o divino.
“As mensagens herméticas são aquelas trocadas entre divindades. Para compreendê-las, é preciso um critério espiritual”, explica.

Professor e poeta Daniel Glaydson
Nesse horizonte, o hermetismo de Faustino não é barreira elitista, mas expressão de uma linguagem extrema, capaz de unir violência verbal e ternura essencial. Daniel lembra que foi essa potência que permitiu a Faustino compreender profundamente Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, e que levou Glauber Rocha a proclamá-lo “o maior poeta de sua geração”, citando seus versos na apoteose de Terra em Transe.
“Na violência da linguagem hermética habita uma eterna ternura”, diz, evocando versos em que caos e ordem, cosmos e alma se enfrentam sem concessões.
Ao fim, talvez a pergunta não seja se Mário Faustino é ou não hermético, mas que tipo de leitura sua poesia exige. O rótulo, quando usado de forma apressada, pode afastar leitores; quando compreendido como convite ao mergulho, pode funcionar como chave de acesso a uma das vozes mais intensas da poesia brasileira do século XX.
Como um meteorito que risca o céu — imagem evocada por Daniel Glaydson —, Faustino ilumina por instantes, mas deixa marcas duradouras. Cabe ao leitor decidir se observa esse clarão à distância ou se aceita o risco da aproximação.
UMA LEITURA ATUAL E NECESSÁRIA

Obra é edição da Nova Aliança Editora
Recentemente, a Editora Nova Aliança, de Teresina, publicou Mário Faustino Revisitado: Texto Críticos e Antologia Comentada, de Carlos Evandro Martins Eulálio. A obra, que reúne ensaios, cronologia e orientações seguras de como ler Fautino, é um roteiro para se ler com entusiasmo e interesse a obra do poeta piauiense que fez escola na poesia e na crítica literária. Reforça também o ponto de vista do autor e organizador Carlos Eulálio: o suposto hermetísmo de Faustino está no leitor, o repertório do leitor é o que torna a leitura de um poema mais ou menos exigente.




