Raymundo Netto: A voz de meu pai
[Raymundo Netto]
 
"Vejo meu pai como um artista. Saber viver é uma arte. De todas, a mais difícil! Ele era semianalfabeto, nascido numa cidadezinha que nunca eu ouvira falar e, mesmo assim, conseguiu um emprego seguro, casou-se e teve nove filhos, criando e educando a todos. Em seu emprego, era querido e respeitado tanto pelos chefes como pelos subalternos. Quando ia ao Quartel era recebido como uma celebridade. Até o general o tratava com cortesia - chamava-o de mestre Raymundo - e sempre se oferecia para ajudar-lhe quando precisasse. Hoje, quando penso como papai conseguia conquistar todas essas pessoas, independentemente de patente ou de nível social, percebo que tinha muita sabedoria."
 
Há apenas 12 anos, o meu pai, José Pedro, passou a me visitar quase que diariamente pelas manhãs. Ele, mais acostumado a dar do que a pedir, chegava humilde, quase litúrgico, em gestos e palavras. Trazia debaixo do braço um caderno velho de apontamentos onde montava uma espécie de autobiografia. Precisava de minha ajuda para "ver se estava tudo certinho". Minha missão, quase a de um escrivão: sentar ao seu lado, digitar o que escrevera e melhorar aqui e acolá, sem alterar o texto, a sua "voz", tornando-o bem compreensível ao expressar o que acontecera e o seu sentimento a respeito. Então, enquanto eu digitava, lia em voz alta. Ele, ao lado, acompanhava. Explicava-me, quando achava necessário, as entrelinhas daquela história, confirmando-a com lamento, certa timidez ou mesmo se divertindo muito.
 
O menino, que nascera no Dia de São Pedro, na rua das Neves, s/n, em Casa Amarela, no Recife, falava sobre a infância, as escolas, as aventuras e travessuras, a juventude no Largo da Paz, os carnavais, os primeiros amores, o trabalho - desde os 13 anos -, a vinda a Fortaleza, o casamento, a família, as dificuldades financeiras, as escolhas, as renúncias, a sua vida religiosa, entre outras.
 

Naqueles dias, visivelmente emocionado ao passar a limpo aquelas memórias, quase toda passagem do texto gerava uma nova história, uma vida que mais parecia ter 100 anos (tinha 67). Eu questionava, pedia-lhe para repetir aquilo, tentava situar historicamente, enquanto na minha cabeça tudo se transformava em imagens de filme antigo, um drama humano, que, aparentemente, poderia ser a história de qualquer um, mas não o era para aquele homem. No trecho acima, em que descreve o pai - quando pequeno, por perceber que a maioria das pessoas gostava mais das mães, decidiu gostar mais do seu pai -, ele, sem o perceber, retratou-se como nós, filhos, o vemos. Sim, aquele "artista" era ele mesmo. Daí, ao final, outro trecho: "A maior lição que recebi, e esta, veio do exemplo de meu pai, é procurar ser o pai que ele foi, fazendo tudo pelos filhos." E o fez, assim como pelos seus netos, enquanto pôde. As lições que nos deixou comprovam isso. Até que na manhãzinha de 25 de outubro de 2018, ele descansou desse mundo, deixando agora as suas memórias, como as folhas de outono, ao vento, espalhadas entre as nossas e as de outras tantas pessoas que nos chegam e sorriem ao falar o seu nome, a nos provar que a vida não cabe no tempo, apenas se alimenta dele, assim como aquilo que insufla o corpo, quando muito, transborda dele, resistindo ao esquecimento e nos acolhendo naqueles momentos em que achamos não existir nada mais na estrada que valha uma vida.