"Quero ir sempre à raiz da alma, ainda que isso me cause sofrimento. "

ENTREVISTADO:

Raimundo Carrero
Tangolomango, novo romance de Raimundo Carrero, é enxuto, com apenas 128 páginas. Mas, cada capítulo (na verdade, cada frase) representou uma autêntica vitória para o escritor pernambucano de 65 anos - afinal, foi seu primeiro trabalho publicado depois de sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) em outubro de 2010, que o deixou com a fala e parte da movimentação comprometidas. "Com isso, esse se tornou meu principal romance", garante Carrero, em entrevista por e-mail ao Estado.

Ele escreveu as respostas usando apenas o dedo indicador da mão direita, recurso também utilizado para criar a trama de Tangolomango, em que recupera um personagem de seu romance anterior, O Amor Não Tem Bons Sentimentos, Tia Guilhermina. Agora, em pleno carnaval, ela sofre com a possibilidade de seu sobrinho Matheus, com quem mantém uma relação muito íntima, ser preso. Sobre o assunto, ele respondeu às seguintes questões.

UBIRATAN BRASIL - Pela circunstância em que foi criado, é possível dizer que Tangolomango é seu principal livro?

Sim, Tangolomango é o meu principal romance, pelas circunstâncias em que estou envolvido, curando-me das sequelas do AVC, pela vida de Tia Guilhermina, por quem me apaixonei perdidamente, pelos avanços técnicos e pela retomada dos elementos armoriais - o carnaval é a maior festa armorial brasileira, numa homenagem ao meu amigo Ariano Suassuna. Significa também um retorno ao meu começo literário com os temas centrais e a consolidação da minha visão do mundo. É um romance, tecnicamente, muito sofisticado, escrito em ritmo de frevo, com improvisações, variações e movimentos, sem relatar, mas representando - privilegiando sentimento e a não narração convencional. Sem esquecer que também sou músico, toco sax tenor desde a adolescência. Um romance para a mente e o coração, não apenas para os olhos.

UBIRATAN BRASIL - Por que Guilhermina voltou?

Tia Guilhermina tinha um papel muito forte na família Cavalcante do Rego, com suas virtudes e seus pecados, limpezas e sujeiras, e porque sempre foi considerada, pela família, como um exemplo, um modelo, daí ter sido escolhida para criar Matheus. Só apareceu em O Amor Não Tem Bons Sentimentos porque Matheus resolveu falar dela e da intimidade da casa, os dois se amando e tomando banhos juntos, nus. Portanto, era tão sensual quanto os outros. Uso a palavra sensual no sentido dostoievskiano de desregramento, do comportamento impulsivo e cego, que vai do crime físico, assassinatos, traições, envolvimentos até o amor. Assim, não apenas sexual. Vai além, muito além. Por isso, a técnica não podia ser convencional, aproxima-se da usada por Flaubert para narrar os comícios agrícolas em Madame Bovary, em que se pretende escutar o burburinho da feira. Também em Tangolomango se pretende escutar o burburinho do carnaval, com os sons dos instrumentos, das músicas, das letras, as reflexões desordenadas da personagem, o tempo sem tempo, a mudança ou as mudanças dos tempos verbais, uma aparente confusão. É preciso ver Tangolomango como um romance atemporal, embora e em certo sentido as músicas cantadas remetam o texto a décadas passadas.

UBIRATAN BRASIL - É curioso como Guilhermina desponta melancólica mesmo em uma época tão festiva como o carnaval. Por quê?

Na verdade, Tia Guilhermina está vivendo uma grande dor, com saudades de Matheus acusado de estuprar e assassinar a mãe e a irmã. No começo da narrativa, sabe-se que ela anda em desespero porque Matheus vai a novo julgamento, e isso a inquieta: "Como é que um menino tão doce e tão belo" pôde estuprar e matar a mãe e a irmã? E, se isso aconteceu, ela não quer admitir, por que não foi com ela, já que ele fez sexo e, portanto amou? E não com ela, que amava tanto? Um grande ciúme, um magnífico ciúme, mesmo que tivesse sido assassinada. Não poderia ser de outra forma: carnaval e tristeza, sem dúvida. Sem contar, que o carnaval é uma festa triste. "Tanto riso, ó quanta alegria, mais de mil palhaços no salão", diz Zé Kéti interpretando o amor de Pierrot e Columbina. Carnaval e tristeza, a mesma coisa.

UBIRATAN BRASIL - Vejo semelhança no seu trabalho com o do cineasta Claudio Assis, também pernambucano.

Somos autores sensuais, naquele mesmo sentido de que fala Dostoievski, sem limites, excessivos. Já fui chamado de apóstolo do excesso, com o que concordo. Quero ir sempre à raiz da alma, ainda que isso me cause sofrimento. É preciso botar o dedo na ferida. Um escritor não pode se esquecer disso.

UBIRATAN BRASIL - Por que os capítulos do livro são curtos e sempre com títulos provocativos?

Em certo sentido, precisei controlar o texto no computador, até porque me perdia muito, sentia a mente flutuando. E não gosto de títulos diretos, narrativos - isso antecipa os fatos ao leitor. O título provocativo ou poético surpreende, não diz, não afirma. E a narrativa deve ser sempre assim, surpreendente.

UBIRATAN BRASIL - Como está a escrita do novo volume da trilogia? Você já tem toda a trama definida, faltando escrever ou vai criando ao sabor da união das palavras?

Sim, chama-se Lamalagata (o caminho da águia no ar) e enfocará a personagem Paloma, amiga de Camila, que também aparece em outro romance, Minha Alma É Mãe de Deus. Lá está dito que ela não cresceu fisicamente e permaneceu menina a vida inteira. Uma personagem cruel e rebelde, mesmo quando há algum lirismo. Pela primeira vez surge uma personagem fora da família, mas ligada a ela pela amizade, grande amizade, embora no momento eu esteja mais preocupado com a biografia de Jesus, e que se chama Jesus Cristo - O Deus Perseguido. E que começa com Nossa Senhora caminhando para Belém, cantando o Magnificat. 

 

 

Entrevista publicada originalmente em O Estado de S. Paulo, em 12.05.2013 gentilmente cedida a Entretextos.