"Quarenta dias"
Por Bráulio Tavares Em: 29/05/2014, às 11H22
[Bráulio Tavares]
Esse romance de Maria Valéria Rezende, recém-saído pela Alfaguara/Objetiva (Rio) é a história de uma viagem à rua. Ele produz, em muitos momentos simples e verazes, quase documentais, a vertigem de quem pula numa cidade como quem pula num barreiro, ou, pra ficar mais proporcional, numa piscina de clube cheia de gente desconhecida. A rua, sem ter onde dormir nem o que comer. Os Beatles já retrataram magicamente essa voragem do desconhecido: “Saí da universidade, gastei o dinheiro, não vejo futuro, não pago aluguel, o dinheiro voou, nenhum lugar para onde ir. Oh, aquela sensação mágica: nenhum lugar para onde ir” (“You Never Give Me Your Money”).
Seria injustiça chamar de existencialista um livro que nada teoriza e parece feito só de existência, mas nesse caso o nome de aplica de qualquer jeito. É a história de você passar a vida carregando nos ombros e acima da cabeça um homem-da-meia-noite ou mulher-do-dia criado por você mesmo e por todos que o conhecem. Construir um Eu Visível e usá-lo como um supermamulengo pela vida afora. De repente você percebe que você e seu personagem são duas coisas diferentes. Quem quebra seu Eu consegue ver através do de todo mundo. Vem a liberdade de poder ver como todo mundo é, como tudo é, por dentro do boneco-gigante-de-si-mesmo. Existe uma certa crueldade indispensável em toda auto-libertação.
Mulher conversa com diários. Dá -lhes nomes de amigas reais ou de imagens da moda. O diário é sua melhor amiga: “Olha, Barbie, sabe por que eu falei isso pra Mamãe? Porque ela é uma chata! Isso mesmo, uma grande chata.” Uma menina se queixando a outra menina da maneira como outra menina criou outra menina. “A idade adulta sumiu, comprimida entre a juventude esticada até o limite do indisfarçável e a tal da melhor idade” (p. 55)
É a história de Alice, uma mulher nessa faixa etária “zona fantasma”, que se muda de João Pessoa para Porto Alegre ao longo de uma desilusão afetiva, e procura numa cidade desconhecida fazer alguma coisa, mesmo pequena, mas que valha a pena. Quando a bolha explode, ela vira uma espécie da “Velha Dama Indigna” de René Allio ou Dora de Central do Brasil. Uma Alice que ao invés de variar de tamanho varia de idade, pulando de menina para velhinha fatigada, daí para mulher madura e compreensiva, sempre com passagens pela menininha antes de voltar à jovem cheia de expedientes, capaz de pequenas vitórias. Fica apertando e folgando os próprios conceitos como quem aperta e folga roupas. E descobre a rua, descobre o que é se sentir sem lar, sem uma casa para onde voltar, como uma completa desconhecida, como uma pedra rolando.