Quando um homem é dividido em tantas mulheres

João Pinto - especial para o Portal Entretextos

Alguém me pariu, tudo bem, é o gesto da primeira mulher, meu chapa. Nisso inclui a dor do parto e cuidados do aleitamento. Mas, ao cortarem o meu cordão umbilical foi a primeira dor que sofri da mulher. Mentira, você pode dizer. Ora, mas a nossa matriz deixou grudado na nossa pele o odor dos órgãos dela que, com o passar do tempo, isso vira uma mania para ir em busca desses odores, para se viver mais afinado e formar a nossa memória biológica ou de labirinto, que é maneira como um homem faz sua divisão entre elas.

 

E fui atrás desses odores. Na primeira tentativa encontrei uma menina loura, quase branquela, que andava de bicicleta, um lindo romance pueril na sala de aula, depois alguns encontros com beijos e promessas. A loura Ester me deu o primeiro chifre na cabeça e me substituiu por um rapaz mais galante, taí o primeiro odor do cordão umbilical partido, o chifre ficou amarrado em mim. E veio a Océia, na mesma cidade, menos com a cor de cal, uma morena, de pele tapuia, ao fazer minhas unhas, o odor da lactação ficava como um grito na minha boca, depois a tontura me passou quando de repente foi embora para Brasília.

Agora o cenário me vem de um estudante no Paulo Ferraz, na capital do Piauí. E sempre essa vontade de misturar e ficar esteticamente cheio de odor, de crises momentâneas que são produzidas pelas mulheres. O bom da vida é ficar dividido entre elas para que o nosso destino seja menos cruel e a gente não fique um placebo numa cápsula de solidão.

 

Um outro odor, talvez uma mulher que não era só minha, a negra Jair largada como doméstica numa pensão de estudantes. De olhos baços, alta de boas alturas, só os dentes eram brancos, nada se compara com essa parte da África. E olhe que quando a encontrei na pensão, o odor dela estava mais para tempero de panela alho porro e cebola cortada em rodelas. E até hoje quando outra negra se aproxima de mim, nem sou besta de não a trazer de volta, com a janela escancarada, num quarto dos fundos da pensão, de lá vinha o odor dos peitos lactantes introduzidos, a nuvem de muriçocas posta na escuridão e sabe-se lá o que havia no ventre dela, saía moído, Jair agora tem um lugar de honra com a rede e os vidros de perfume barato que o dinheiro só dava nos camelôs.

 

Logo mais um mar turquesa com restos de conchas e sargaços me joga para as praias de João Pessoa. E fico numa alegria danada atrás de outros odores. Me inscrevo no Viaduto do Chá tomando café ou cerveja no coração da cidade, que nascia dentro dos meus olhos. Logo depois das aulas do curso de Letras, depois de um lanche frugal com pouco dinheiro, uma mulher também branca e de ossos compridos, a Medeiros, me levava para trás dos blocos da faculdade. Dessa memória vinha a bolsa dela espalhada na grama cheia de cosméticos e papel higiênico ao lado dos meus sapatos e a cueca, na encenação do odor entrava perfume Rastro, e a luz dos faróis que cruzavam numa pista, às vezes o medo de o guarda fichar a gente na policia.

 

Outra veio, é só atravessar o rio e cair dentro do Maranhão, passar por São Bernardo e chegar numa cidade hoje que é um fantasma de areia. De uma comprida rua onde o silêncio dói na gente. Dessa Maria, que conheci aos 16 anos e ela com 14, já vive casada. Só as férias me dava essa garota, de grande iluminação interior, com as cartas cheias de amor e um único retrato, que vive apagado na minha carteira. O odor dela vem da boca, grudado nela naquela rua comprida, que nem o vizinho me importava, das cartas que um carteiro me entregava, falando do amor dela mas que eu aumentasse mais uns quilos, Maria foi embora, nunca aumentei de peso, acho que tenha deixado as minhas cartas numa lareira ou que as tenha colocado num saco de lixo para alguém levar.

 

Outros odores vêm de uma moça que vendia panelas, era magra e gostava de bebedeira, nem me lembro mais do nome dela, só lembro que depois das aulas, aqui na floresta, bebia com ela no bar do Anídio. Ao deitar com ela, o odor dela só sai vinho, tinha pavor das pererecas, e dos carapanãs, essa me deixou um bilhete sobre a mesa, que rompia o caso amoroso de uma semana, levou suas panelas e pegou um gaiola no Madeira, o que tenho dela é um conto que fiz, cheio de odor apaixonado e perdido.

E, hoje, 8 de março, que acordei reuni todas essas mulheres a Maria, a negra Jair, a Ester, outra de nome que não lembro, a Océia, e uma prostituta chamada Rita, que me pedia que a tirasse do cabaré porque gostava de transar comigo, todas elas me fizeram acordar cedo. De cada uma vinha um valor e um odor diferente. Cada uma me fez feliz e me deram a memória de escrever. Exalto nessa data todas essas minhas amadas. Então como vou dizer. Ainda era escuro, fui à cozinha e preparei o café porque cada uma me fez ver a vida com respeito. Depois fiz três tapiocas e as untei com azeite de oliva. Pus numa travessa com as xícaras. Logo mais vi a buzina lá pelo portão. As duas irmãs se sentaram na mesa. A Elis que me deu três filhos passava uma das tapiocas para a Raquel, e as duas ficaram conversando ao digerir o café matinal. Sentado em uma das cadeiras, só via naquela mesa posta todas elas, a bolsa da Medeiros, o alicate de unha da Océia, a bicicleta da Ester, a cabeça de alho da Jair, as cartas da Maria, o bilhete da desconhecida que não me queria mais, a minha mãe que tinha me dado todo odor das mulheres, a Raquel com o carro dela e a Elis com escova de dente na pia.

 

JOÃO PINTO

Manaus, 8 de março, 2012