(Miguel Carqueija)

Uma aventura da bruxinha Edlaine Gomes


QUANDO BRUXAS SE CHOCAM


    Jamais haverei de esquecer o dia 10 de novembro de 2009. O famoso dia do apagão, que no início todo mundo pensou ser local.
    Papai, mamãe e os manos nem sempre me compreendiam e, consequentemente, também não entendiam porque eu dera para dormir cedo, seguidamente. É que o meu quarto era o meu castelo, o meu refúgio de privacidade, e quando eu me via nele a sós, à noite, podia melhor estudar o caderno de memórias da minha bisavó Adelli.
    Há poucos dias eu rompera com o meu namorado Custódio, porque, em pleno Dia das Bruxas, ele tentara avançar o sinal contra a minha vontade. Surpreendentemente eu não estava sofrendo muito por me ver privada de um namorado. O fato é que a minha auto-descoberta — o despertar dos meus poderes de bruxa — deixara-me tão excitada que eu quase não conseguia pensar em outra coisa. Conseguia, com certeza, enrustir os meus pensamentos, até porque a minha bisa deixara escrito um conselho muito importante: “Minha bisneta, você lerá o que as outras pessoas não conseguirão ler, por isso lhe digo sem susto: não revele a ninguém os seus poderes, nem mesmo aos seus pais e irmãos. Tal revelação só lhe trará problemas, vá por mim. Talvez algum dia você possa falar com alguém, mas o seu instinto lhe dirá que sim, que tal pessoa pode saber. Até lá, guarde segredo”.
    Sentindo o peso de uma tal responsabilidade eu cheguei à sacada, insone, morta de calor, tentando tomar um pouco de ar. Nesse momento a Amora, minha gatinha felpuda, passou para a balaustrada e desta para o galho mais próximo.
    — Volte aqui! — chamei. — Não gosto que você se exponha aí fora!
    Eu custo a me acostumar com o senso de liberdade dos gatos, e sempre tremo pela segurança da Amora, se ela fica dando escapadas felinas noturnas. Ela, porém, não me ouviu, e desceu para o chão.
    Foi nesse momento que as luzes se apagaram.
    Incrédula, olhei e volta. Até onde podia enxergar, tudo apagado. Tomando uma decisão, desci pela calha, amparada em minha leveza. A lua era minguante e nuvens obscureciam o céu, de modo que a iluminação natural era escassa. Corri assim mesmo atrás da gatinha que, para meu desgosto, afastou-se das casas e penetrou na mata próxima.
    Eu corria, ofegante e contrariada, e de repente me vi numa clareira, onde brilhava uma fogueira e uma garota dançava nua e mantinha um veadinho amarrado numa estaca. Sim, vocês leram direito: era tudo isso e algo mais: a garota nua segurava uma faca de cozinha.
    Ela parou de dançar e se voltou para mim.
    — Priscila! — exclamei, duvidando dos meus próprios olhos.
    — Edlaine! O que faz aqui?
    A gatinha veio e pulou para os meus braços.
    — O que faço aqui? Vim pegar a Amora, mas e você? Meu Deus, o que está fazendo sem roupa e com essa faca? E esse cervozinho aí?
    A ruivinha, que nunca fôra minha amiga na sala de aula, encarou-me com uma expressão assustadora:
    — Querida, sabe que você viu demais?
    Os olhos dela pareciam brasas. Priscila ergueu a faca, que segurava com a mão direita, e deu dois passos na minha direção. Por um instante os seus “olhos de fogo” pareceram me aprisionar, mas pisquei e consegui me mover. Recuei com a gatinha nos braços, enquanto o veadinho se contorcia preso na corda; por fim Priscila observou:
    — Não consigo te magnetizar. Será que a lenda é verdadeira?
    — Que lenda? Você está louca?
    — Falo da lenda de que a tua bisavó era uma bruxa.
    O sobressalto que eu tive com certeza me denunciou, pois Priscila sorriu maquiavelicamente:
    — Então é isso. A bisneta despertou. Mas não preciso te magnetizar para te matar.
    Pus minha gata no ombro e apanhei um galho solto que entrevira na grama.
    — Priscila, eu não sei o que há com você, mas não se aproxime.
    — Por que não? A mocinha acha que me enfrenta?
    Avaliei a situação e me considerei em vantagem. Com exceção dos pés, que não pudera calçar por ter escapado de casa daquele jeito (meio à moda de Tarzan), eu estava inteiramente vestida.
    — Não tente fazer nada, Priscila. Pelada do jeito que você está, não será páreo para mim.
    — Não mesmo? Você é muito ingênua, Edlaine. Se acha que tem uma vantagem não pode revelá-la à inimiga; deve apenas fazer uso dela.
    — Grata pela dica — respondi ironicamente. — Você foi mais ingênua do que eu.
    Caminhamos uma em vota da outra, avaliando-nos. O absurdo da situação, porém, me revoltou:
    — Afinal por que você está fazendo isso? Somos colegas de classe, como pode querer me matar?
    — Eu poderia te poupar, por ser também uma bruxa. Mas você não é pagã, você vai no grupo jovem da paróquia.
    — É claro que eu não sou pagã. Por que haveria de ser?
    — Pois essa é a nossa diferença, amorzinho. Eu sou uma bruxa pagã, como deve ser; você é uma bruxinha da Maria Clara Machado. Aliás, eu soube do seu rompimento com o Custódio no Halloween, logo depois daquela ventania. Foi quando você despertou, não é?
    — O que você tem com isso? Aliás teve um apagão na cidade, é melhor voltar para sua casa e esquecer essa loucura. Vista suas roupas e vá embora!
    — Estou aqui por uma razão!
    — Sacrificar esse bichinho? É isso o que fazem as bruxas pagãs? Não vou deixar que faça isso!
    Corri até o gamo, toquei a corda, e os nós imediatamente se desfizeram. O bichinho não esperou convite e disparou para o interior do bosque.
    — Façamos um acordo — disse Priscila, apontando-me o facão.
    — Que espécie de acordo?
    — Seria prematuro matá-la hoje, agora. Eu teria que dar um jeito em seu corpo... mas creio que não há perigo, pois nós nos flagramos mutuamente. Você não me denunciará como bruxa, porque nesse caso eu te denuncio também. Não vou te matar, mas fica fora do meu caminho daqui em diante, ou mudarei de idéia. Fui bem clara?
     — Foi sim, mas não se preocupe. Se você quer ser uma bruxa do mal, o problema é seu. Então, Priscila, você também não fica no meu caminho!
    Afastei-me depressa e com as devidas precauções. Chegando em casa, em meio a uma escuridão de breu, bati na porta, sabendo que iria escutar recriminações, mas capeada na necessidade de salvar a Amora de se extraviar. Ninguém precisava saber nada sobre Priscila, mas o caso me deixara assaz preocupada.
       Em menos de quinze dias eu ganhara dois inimigos!