(Miguel Carqueija)

O mundo moderno tem estranhas armadilhas...

 

PRISIONEIROS  DO  COMÉRCIO


                                                               


     Naquele sábado Gian tinha ido ao Center Max em busca de uns poucos produtos, inclusive um determinado livro sobre História Universal, de Enio Garret, muito procurado na época. Não carregava mais do que uma mochila de porte médio, nada comparável às bagagens de centenas de pessoas que por lá circulavam. Aproveitara, porém, para fazer um lanche reforçado, e após, levado pelo desejo de ver coisas, acabara deixando a hora escoar.
     Foi aí que Gian sentiu necessidade de se aliviar. Procurou pelos sanitários do terceiro piso e trancou-se num dos W.C’s que encontrou aberto.
     Minutos depois já havia terminado de se vestir. Levou a mão direita ao trinco.
     Foi nesse ponto que veio o mal súbito.
     A mão recuou. Acossado por avassaladora tonteira Gian buscou em vão abrir a porta e, amparando-se nela e na parede, foi caindo devagar, até esparramar-se no chão.
     Ao acordar, ainda zonzo, lembrou-se que era a segunda vez que isto lhe acontecia.   
     Levantou-se dificultosamente e buscou o trinco. O local estava esquisitamente silencioso. Saindo do w.c. Gian não viu mais ninguém. Ajeitou sua mochila e seguiu para o corredor, onde estavam os aparelhos telefônicos. Uma surpresa o aguardava: nem ali, nem no passeio daquele piso, existiam seres humanos.
     Só então se lembrou de olhar para o relógio de pulso, aquela mesma invenção que muitos atribuem erradamente a Santos-Dumont, quando na verdade já existia muito antes. Levou um susto: eram 23 horas e 14 minutos! Por isso já sentia as dores da fome. Apavorado, percebeu que o centro comercial já fechara há muito tempo e que ele provavelmente se encontrava sozinho, solitário naquela imensidão consumista.
     Apressou o passo. Deambulou pela praça de alimentação, cercado pelos letreiros luminosos do Mac Donald, do Viena, do La Molle e da Pizzaria Parmê. Aturdido, Gian estacou entre as mesas e volteou o olhar por aquele ambiente antes buliçoso, agora fantasmagórico. Por fim, concluindo que era uma besteira permanecer ali, procurou a escada mais próxima, pensando em sair o mais rápido possível. Passou para o segundo piso e logo para o primeiro e encaminhou-se para a mais próxima saída.
     Nervoso, caminhou rápido para a imensa porta de vidro. O hábito já estava tão enraizado que nem sequer diminuiu o passo até esborrachar o nariz contra o vidro inquebrável, fazendo um estrondo considerável.
     A porta de abertura automática não abrira.
     — Que droga... — começou ele, reprimindo-se a seguir. Não lhe agradava falar sozinho.
     “Vejamos”, pensou. “É claro. Isso fecha às dez horas. O sistema está desligado, portanto não é assim que se sai. Mas não há vigias noturnos?”
     Na Era da Automação, tratava-se de uma espécie quase extinta. Haveria alguma monitoração dos corredores? Alguém precisava saber que ele estava ali!
     Espiou para fora. Havia a escadaria e mais abaixo, a calçada. Poucos carros passavam. De qualquer forma, daquela distância e à noite, seria quase impossível que alguém o notasse — ou se incomodasse com ele.
     Subindo dos mais baixos níveis da sua consciência, a angústia aflorou e começou a tomar conta dele. Era irracional, absurdo — afinal, o máximo que poderia lhe acontecer seria permanecer ali retido até ser reaberto o centro comercial, na manhã seguinte — e isso não haveria de ser tão terrível assim, ele sobreviveria. Mas o fantasma do medo não se deixava convencer por aquelas racionalizações: ele estava ali presente, sem querer arredar pé. E então Gian lembrou outro detalhe, que lhe passara a princípio esquecido: no dia seguinte seria domingo. E segunda-feira seria um feriado, dia 7 de setembro.
     Seria possível morrer de fome e sede em dois dias? Gian amaldiçoou a recente lei que obrigava ao fechamento do comércio aos domingos e feriados, lei essa que resultara na extinção dos cinemas dos chamados “shoppings”! Somente farmácias, botequins e restaurantes de plantão, além de postos de gasolina, podiam funcionar nesses dias.
     Teve vontade de esmurrar a porta de vidro. Se aquele desmaio retornasse nos próximos dois dias, o que talvez fosse facilitado pela fome e pelo cansaço, poderia bater com a cabeça e morrer sem socorro. Uma situação absurda.
     Mas devia existir alguma saída! Aflito, desesperado, pôs-se a andar pelos corredores, cansando-se cada vez mais, pois mantinha o passo rápido, o olhar agitado, a mente colhida por grande perturbação.
     Que tal a garagem? Gian procurou a escada para o subsolo. Febrilmente, presa de grande agitação. Desceu os degraus da escada rolante, agora imóvel, e chegou à entrada da garagem... que estava simplesmente vedada por grades de aço inoxidável, intransponíveis.
     Nem vivalma e um silêncio mortal.
     Gian subiu tudo de novo, já sentindo um crescente cansaço. O sono começava a pesar nas suas pálpebras. Vendo uns bancos em frente aos magazines de roupas e bijuterias, acabou por ceder à tentação e deitou-se num deles, sem nem tirar os tênis.
     Acordou mais de uma hora depois, com alguém sacudindo o seu ombro.
     Sobressaltado, viu-se diante de uma mulata vistosa e jovem, que o fitava com olhos entre ansiosos e temerosos.
     — Quem é você?
     — Eu ia lhe fazer a mesma pergunta, Gian — disse ela — mas tomei a liberdade de olhar os seus documentos.
     — Mas por que? — ele se sentou rapidamente.
     — Eu fiquei presa aqui, e estou vendo que você também. Estou desesperada e quero sair. Não quero me meter em encrencas!
     — Acho que já estamos metidos...
     — Sim, mas e se nos pegarem aqui na terça-feira? Você sabe: até provar que focinho de porco não é tomada...
     — Oh, essa não! Nós só temos que explicar o que aconteceu...
     — Isso se deixarem a gente falar. Já conheço o suficiente do mundo, Gian. Precisamos sair antes disso.
     — Qual é mesmo o seu nome? Você não disse.
     — É Susy. Me desculpe. Ah, pode examinar sua carteira, eu não tirei nada. Queria ver se podia confiar em você.
     — E agora, acha que pode?
     — É claro. Se você portasse fotos pornográficas eu ia me afastar e rezar para que os nossos caminhos aqui dentro não se cruzassem.
     Gian sacudiu os cabelos.
     — Vamos mudar de assunto, OK? Tudo o que eu quero é sair desse lugar absurdo.
     — Eu também! Talvez juntando as nossas cabeças possamos encontrar um jeito!
     — Eu já tentei de tudo... nunca me vi numa situação dessas...
     — Nós vamos conseguir. Venha, vamos agir!
     — Espere aí. Eu sou uma besta! Vamos telefonar para alguém!
     — Ah! Eu já tentei, pensei que você já tivesse feito isso. Sabe o que é, Gian... os telefones daqui estão todos desativados.
     — Do que é que você está falando? É totalmente impossível...
     — Não é não. É o sistema de “morte total”, agora em uso nesses lugares... a automação chegou a tal ponto que após o fechamento de um desses antros, como esse em que nós estamos, segue-se a gradual, automática e programada paralisação de todas as atividades e de tudo o que estiver ligado, que terá de ser reativado mais tarde, quando o centro comercial reabrir.
     — Mas ainda temos luzes!
     — Essas mesmas irão se apagar, com exceção dos letreiros externos. Aliás já estão ficando mais fracas. Nós vamos nos ver, em breve, numa escuridão de caverna. E mais: até a água vai ser cortada.
     — Isso é loucura... não pode ser...
     — Você está desatualizado, mas eu conheço gente que trabalha no Iguatemi e outros centros desse tipo. E é assim que a coisa está funcionando.
     — Se eu tiver que ficar dois dias no escuro eu vou pirar.
     — Imagino que sim. Não, nós vamos ter que arrombar alguma coisa e escapar, e tem que ser o quanto antes!
     Ela se levantou:
     — Venha! Não adianta mais ficar aqui sentado.
     — Você tem alguma idéia?
     — Talvez seja possível sair pelo teto.
     — Ah, não! Vai ser muito arriscado!
     — Então vamos para qualquer saída, estudar a situação. Vamos que temos pouco tempo!
     Começou assim uma corrida contra o tempo. A idéia de permanecer dois dias completos no escuro absoluto apavorou Gian. E a necessidade de ir ao banheiro? E os seus desmaios? Eles correram na direção da entrada principal, só para esbarrar na mesma dificuldade de antes.
     — Talvez tenhamos mesmo que sair pelo teto... — ele murmurou.
     — Não há ninguém que o espere, Gian? Ninguém que saiba que você mora aqui?
     — Eu sou um solteirão e moro sozinho.
     — E você não tem celular?
     — Tenho, mas está no conserto. E o seu?
     Ela sorriu.
     — Deixei temporariamente com a minha mãe, sabe, ele estava me dando muita despesa.
     — Bem, e a sua mãe sabe onde você está?
     — Não sabe. Eu não planejei vir até aqui, compreende? Foi um impulso de momento. Mas como é que você acabou ficando preso aqui?
     Ele narrou o seu problema de desmaio, o que a deixou bastante preocupada.
     — Você não pode ficar muito tempo sem comer. Foi sorte sua eu estar aqui, tenho biscoitos na minha bolsa!
     — Bem, mas você vai precisar deles também.
     — Mas eu não desmaio, Gian. Biscoito é melhor que nada, se você ficar aqui vai ter que se alimentar! E eu comi há menos tempo que você, não fiquei horas desmaiada!
     — Mas então como é que você não conseguiu sair?
     — Foi uma besteira, sabe? Um trinco de reservado que enguiçou... empenou... e eu quase não consigo sair. E isso foi em cima da hora, quando já estavam fechando...
     — Alguma coisa está errada. Se as coisas estão desse jeito, já deveriam estar ocorrendo outros casos de pessoas retidas...
     — Mas vão acontecer, você verá! Puxa, o tempo está passando! Vamos agir!
     — Já sei — disse Gian. — Vamos tentar arrebentar essa porta!
     — O que? Mas o vidro é inquebrável!
     — Pois vamos tentar, Susy. Vamos pegar um banco e usá-lo como aríete.
     Ela pôs três dedos da mão direita nos lábios, contendo o riso.
     — Tolo! Esses bancos são de pedra esculpida! Mesmo que não estivessem fixos no piso, nós não íamos conseguir erguer!
     Gian já se sentia em pânico. Deu um pontapé no vidro, só para machucar o pé. Ela o abraçou para conter o seu ímpeto:
     — Pare, por favor. Você teria que ser o Super-Homem. Vamos pensar noutra coisa!
     — Já não consigo pensar em mais nada!
     — Está bem, Gian. Deixe que eu penso. Lembra da praça de alimentação?
     — Sim, mas...
     — Lá tem mesas soltas e leves. Vamos pegar uma e tentar. E rápido, antes que a luz se apague de vez!
     Os dois correram até o piso da praça, depois desceram tudo de novo pela escada rolante imobilizada, carregando uma mesa de lanchonete, branca e redonda, feita de alguma fibra plástica.
     — Vamos agir juntos, vamos juntar as nossas forças, OK? Não me decepcione!
     — Vamos logo — disse ele, que agora só pensava em se evadir.
     Entre o banco e a bijuteria, a porta de vidro corrediço. Ambos ergueram a mesa e avançaram... com decisão.
     O móvel impactou contra o vidro, ruidosamente... e surgiu uma rachadura.
     — Puxa! — desabafou Gian. — Deu resultado!
     — Já vi isso em história em quadrinhos do Dick Tracy — ela sorriu para ele. — Mas temos que continuar fazendo!
     Na quarta tentativa o vidro quebrou em definitivo.
     — Nós temos que ir... — disse Gian. — antes que passe uma patrulha da PM!
     — Mas antes vamos limpar as impressões digitais!
     — O que?
     — Por via das dúvidas, tolinho. Pegue o seu lenço que eu pego o meu. É jogo rápido!
     Quando por fim saíram, o arrombamento fôra decerto visto por vários ocupantes de carros que passavam... mas quanta gente, hoje em dia, se envolve no que não lhe diz respeito?
     Quanto a Gian e Susy, casaram-se oito meses depois, não sem antes ele fazer um tratamento para os desmaios.