Primeiras Estórias: O cavalo que bebia cerveja
Por Bráulio Tavares Em: 03/04/2022, às 23H03
[Bráulio Tavares]
Num dos seus astutos comentários à obra de Guimarães Rosa, que ele conhecia tão bem, Paulo Rónai lembra que o contista era quase que um especialista em histórias onde “o conflito esperado deixa de se cumprir”, e que o autor gosta de histórias com “dois enredos que se completam e se explicam, sendo que o secundário só se entrevê intervaladamente.” São observações que se lê em sua introdução (“Os Vastos Espaços”) às primeiras edições do livro Primeiras Estórias (1962).
É mais ou menos o que sucede em “O Cavalo que Bebia Cerveja”, o décimo-terceiro conto do livro. O rabisco do enredo é simples. O narrador é Reivalino Belarmino, cujo nome oficial só no fim do conto ficamos sabendo. Ele mora com a mãe perto de uma chácara cercada de altas árvores, protegida, meio oculta, pela qual eles têm que passar todo dia.
A chácara foi comprada por um estrangeiro misterioso, homem cheio de sotaque, que come de maneira espalhafatosa e pouco educada. O rapaz meio que antipatiza com ele, mas acaba se tornando seu empregado, fazendo pequenos mandados, e o conto é o estreitamento gradual dessa relação.
O segundo enredo é o que acontece no vilarejo, onde de vez em quando chegam homens de fora interessados nos detalhes da vida do gringo, que se chama “Giovânio”, tem sotaque italianado (“bisonha outra garrafa”, “lei quer ver?”, “não laxa as armas!”), tem um cachorro chamado “Mussulino”... O narrador registra que o gringo comprou a chácara “no ano da espanhola”, ou seja, 1918 aproximadamente.
Os homens de fora têm perguntas específicas para fazer ao rapaz, sobre seu empregador: “se ele não tinha numa perna, em baixo, sinal velho de coleira, argolão de ferro, de criminoso fugido da prisão”. Não; nada.
Todo gringo é excêntrico; pode-se argumentar que um migrante é alguém que se afastou do próprio centro, e sempre vai ser visto meio de viés pelos naturais do centro-alheio onde se instala.
Guimarães Rosa vai desenhando esse personagem através dos olhos do rapaz, o narrador, cheio das pequenas picuinhas dos interioranos contra quem vem de fora, “vindo comprar terra cristã” e que decerto “tinha remorso, de ser estrangeiro e rico.”
Um dia, ele se vê novamente convocado ao vilarejo para dar parte aos forasteiros, desconfortavelmente, dos hábitos de seu empregador, mediante pequenas gratificações, que embolsa, carrancudo. Ele diz que Seu Giovânio lhe pede que compre cerveja, explicando que é para o cavalo, e quando as autoridades o visitam na chácara, e o submetem a teste, pois não é que o cavalo bebe cerveja mesmo?!
Mesmo assim, a aura de mistério permanece. Reivalino percebe desde cedo que a casa, que é grande, vive trancada, e Seu Giovânio dorme, cozinha e come nos espaços do lado de fora. Quando as autoridades dão uma incerta, ele abre a casa e os conduz a um aposento onde todos se deparam, espantados, com “um cavalão branco, empalhado”, em tamanho natural, trabalho perfeito, e que deve ter exigido um grande esforço no traslado e remontagem.
Na reta final do conto, Seu Giovânio abre o jogo, chama as autoridades e revela o segredo: seu irmão, “Josepe”, que vivia trancado na casa, acaba de morrer. E quanto a autoridade local exige exame do cadáver...
Mas aí se viu só o horror, de nós todos, com caridade de olhos: o morto não tinha cara, a bem dizer – só um buracão enorme, cicatrizado antigo, medonho, sem nariz, sem faces – a gente devassava alvos ossos, o começo da goela, gorgomilhos, golas – “Que esta é a guerra,” seu Giovânio explicou...
A narrativa nos faz suspeitar desde o início, por detalhes variados, de um criminoso comum (ou criminoso de guerra) que ali se esconde; a impressão que fica no fim é de dois fugitivos da guerra, um cuidando do outro. Um irmão interno que se esconde na casa, que nunca sai, nunca é visto, e até sua existência é ignorada enquanto vive; e um irmão externo que se encarrega dos cuidados, que entra em contato com o mundo, que vive praticamente do lado de fora da casa, pelo bem do outro.
No final, Reivalino conta:
Não avistei mais o meu Patrão. Soube que ele morreu, quando em testamento deixou a chácara para mim. Mandei erguer sepulturas, dizer as missas, por ele, pelo irmão, por minha mãe. Mandei vender o lugar, mas, primeiro, cortarem abaixo as árvores, e enterrar no campo o trem, que se achava, naquele referido quarto.
É um meio mistério que se deslinda numa revelação menos espantosa mas igualmente dramática (o irmão desfigurado); e é a história dessa relação atritada e pouco cômoda entre seu Giovânio e “Irivalíni”, com ele chama o rapaz. O qual passa de empregado-a-contragosto a possível delator do patrão, depois a solidário, depois a herdeiro.
Os manuais literários norte-americanos nos ensinam que toda história se baseia num conflito, no confronto entre duas forças, e na vitória final de uma delas. Essa fórmula corresponde, com perfeição, a todas as histórias que são escritas com ela em mente.
Os conflitos roseanos são de outra natureza, e neste conto o conflito principal (entre o jovem matuto mineiro e o velho migrante italiano) é um lento atrito que ao longo dos anos vai aplainando as antipatias dos dois e que no final, lubrificado por uma boa herança, se resolve em missas e escrituras.
É o que Paulo Rónai assim avalia: “Nesse corajoso – e convincente – emprego do anticlímax deve-se ver prova decisiva de mestria na arte de tramar histórias.”