Cunha e Silva Filho


                   Passando por uma famosa igreja do meu bairro, reparei que o portão se encontrava fechado ou, no mínimo, as duas divisões de ferro  estavam bem encostadas. Estava com pressa porque ia ao dentista com hora marcada. No entanto, pude ouvir algumas palavras de uma mulher ainda jovem , usando óculos, meio morena, de altura mediana, vestida de forma simples, falando de dentro do adro para quem passasse pela calçada que dá para a entrada principal daquele templo religioso. Chamou-me a atenção porque a igreja estava fechada e parecia não haver ninguém lá dentro. Este o primeiro sinal estranho da presença solitária daquela mulher. Via-se visivelmente que estava fazendo um “discurso” de protesto. Ora, ali não era nenhum Hyde Park londrino,famoso  por seu Speaker's Corner, onde pessoas podem usar da palavra para discutir questões importantes ou não, nem tampouco estávamos na Praça da Cinelândia, perto da bela estátua de Carlos Gomes. Esse era o segundo sinal de estranheza.
                  Um terceiro sinal mais contundente era o conteúdo de algumas palavras ou frases do seu enunciado solitário e de contestação. “Santa Madalena! Lugar profano! Imagens não têm nenhum valor” Não passava de uma prostituta. Como acreditar em imagens?" Via-se que a verborreia estava exaltada, indignada, pronta ao confronto. O resto do que teria dito não foi alcançado pelos meus ouvidos porque, segundo já afirmei, estava com pressa.
                 O que me intrigou no incidente presenciado em instantes de minha passagem transitória era o lugar que aquela mulher contestadora havia escolhido para desancar verdades históricas do Novo Testamento. Era a audácia da mulher que, no adro da igreja católica, proferia impropérios contra princípios e dogmas católicos nas barbas de Cristo.
                 É bem possível que o portão só estava encostado para que a mulher ali adentrasse e ferisse verbalmente um templo santo. Vivemos atualmente a era dos protestos, justos ou injustos.Todavia, a figura estranha e um tanto fantasmagórica daquela mulher ainda jovem me desconcertou. Tive ímpetos de parar para ouvir mais o que tinha a dizer aquela criatura com olhar desvairado, desse olhares muito próximos do que poderíamos chamar fanatismo – essa praga que se alastra em muitos setores da vida coletiva de muitos países, inclusive do Brasil.
                Por que razão ou razões de sanidade ou de loucura uma mulher sai de sua casa , entra, não sei como ao certo, num templo católico e começa a se manifestar no espaço da própria igreja católica? Seria uma personagem saída do conto “O alienista,” de Machado de Assis?
               Se, no plano de sua convicções religiosas, ali estava era porque não era católica. E por que escolheria logo um dia em que a igreja estava vazia quando, em dias normais, fica apinhada de fiéis, iluminada e com seus coral que enternece as almas presentes nos dias de missas ou de novenas?
               A questão do uso das imagens simbolizando iconicamente os santos e a Família Sagrada faz parte da tradição católica e não é contraditada por nenhum de seus seguidores. Não vejo nenhuma contradição ou como uma ato de blasfêmia o uso das imagens sagradas cristãs, posto que tenham sido historicamente usadas para figurarem deuses pagãos. Assim também se incluiriam o uso da cruz e outros elementos que fazem parte do ritualismo católico. Não são, pois, heresias contra as concepções cristãs. Veja-se o exemplo da imagem de um ente querido ou de um amigo na forma de pintura, de fotografia ou de outro meio visual.O que há de errado em apreciá-los?
             Há algum mal em sentirmos felizes de vermos essas imagens? Na realidade, amamos o ser físico e espiritual do ente querido. Porém, a foto, o retrato de alguém que amamos fazem parte de nossa memória visual e afetiva. Não seria talvez muito desolador se não houvesse os pintores, os retratistas, os paisagistas que eternizam seres e humanos e elementos da natureza?
            O snapshot de uma imagem de alguém feito num determinado espaço e tempo passado tem muito peso em nosso mundo interior, visual, gestual, plástico, sonoro. Veja a vida injetada no mundo da ficção pelo poder mágico da força narrativa de um grande escritor como Marcel Proust e tantos outros em todas as literaturas do mundo.
            Ao valorizar o emprego, nos templos católicos, por exemplo, da imagem de um santo, ou do Criador do Universo, ou da Mãe Santa de Cristo, a Igreja não prega a adoração de imagens em si. Quem diria, pergunto – que o objeto em si não tem a sua interioridade como parte metonímica da Totalidade do Universo que significa e é significada? A verdade da imagem está na sua associação com a transcendência, com o que denominamos espiritualidade.
           As imagens fotográficas, as gravações fílmicas, a pintura, a escultura, a dança, o cenário do teatro, a música, as linhas da pintura não-tradicional fazem parte de nosso universo afetivo, de nossa memória, de nosso repertório multifacetado. São partes da nossa cultura, da grandeza da dimensão material e imaterial.        Todos esses componentes de nossos sentidos constituem uma espécie da unidade signficante/significadora do visual e do divino. Separá-los é que é, sim, uma heresia, uma douta ignorância.
           È o desconhecimento desse outro lado da moeda que possivelmente leve alguém como aquela mulher que encontrei por acaso em pleno adro de um templo sagrado com olhos desvairados, movida, quem sabe, pelo fanatismo nocivo que, aos olhos do transeunte, pode parecer o discurso da alienação.