Polêmicas literárias no Brasil
Em: 10/08/2014, às 13H51
[Cunha e Silva Filho]
As polêmicas surgem em decorrência de princípios ou ideias divergentes que se chocam entre indivíduos ou grupos nos múltiplos campos do conhecimento humano. Na literatura portuguesa, tivemos a velha e famosa “Questão Coimbrã” ou do ”Bom Senso e Bom Gosto,” travada entre Antônio Feliciano de Castilho e seus seguidores representando a geração antiga, e os rivais Antero de Quental e Teófilo Braga, intérpretes estes da geração mais moça.
Esta polêmica, plena de injustiças e de desrespeito da parte dos mais novos e sobretudo de Antero de Quental, se dera por razões de pressupostos estéticos entre o Romantismo e as novas concepções de ordem científico-evolutiva do Realismo, movimento literário através do qual os novos procuraram a derrocada do grande movimento anterior de amplo espectro nacional e universal.
No domínio da vida literária brasileira o capítulo das polêmicas não é pequeno em sua incidência, particularmente no século XIX,
Só para ilustrar algumas polêmicas ocorridas no século XIX, podemos mencionar as divergências estético-ideológicas entre José de Alencar e os defensores de Gonçalves Magalhães a propósito do poema “A Confederação dos Tamoios,” escrito por este último, considerado o introdutor do Romantismo brasileiro com a obra Suspiros poéticos e saudades(1836). O escritor de Iracema, usando o pseudônimo de Ig, atacara aquele poema de Gonçalves Magalhães através da publicação de oito Cartas sobre a Confederação dos Tamoios(1856). Alencar julgara o poema fraco poeticamente e reprovava na composição do poema as ideias de Magalhães sobre o indígena.[1]
Contra José de Alencar cerraram fileiras Araújo Porto Alegre e D. Pedro II. “Numa posição intermediária,” ficou Monte Alegre.[2] Ainda contra Alencar outros fatos ligados à sua produção literária conspiraram injustamente, como a censura que o impediu de levar aos palcos o seu drama As asas de um Anjo.
Ainda mencionaríamos na sucessão de julgamentos críticos de oposição a Alencar a acrimônia do Conselheiro Lafayette classificando a “heroína de Lucíola de ‘monstrengo moral’; as críticas de mau gosto e infundadas de Pinheiro Chagas (escritor português), de Antônio Henriques Leal (escritor e médico maranhense, e não português como, por engano, afirmou Alfredo Bosi), e de Antônio Feliciano de Castilho (escritor português) recriminando, em diversas ocasiões, ser Alencar um autor “incorreto” na linguagem, censura que, por sua vez, recebeu da parte de Alencar, consoante lembra bem Alfredo Bosi, uma fundamentada teoria da ‘língua brasileira.’ [3]
Nas Cartas a Cincinato, o escritor Franklin Távora provocaria a veia crítica de José de Alencar.Távora reprovava as concepções estético-regionalistas de Alencar. Finalmente, mais uma acesa polêmica enfrentaria José de Alencar com Joaquim Nabuco sobre questões estéticas envolvendo obras do escritor cearense.[4]
No início do século XX e até em tempos ulteriores, podiam-se mencionar as polêmicas entre Sílvio Romero e José Veríssimo, entre Carlos de Laet e Valentim Magalhães, bem como entre Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco, entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro, entre o Pe. Sena Freitas e Júlio Ribeiro, entre Cassiano Ricardo e Fernando de Magalhães, entre Sílvio Elia e José de Oiticica. Há pouco tempo, lemos um livro vergastando duramente o crítico Agripino Grieco, a despeito de ser ele mesmo, Grieco, um velho crítico conhecido por sua mordacidade e um espírito sarcástico e demolidor.
Referimo-nos ao livro Carcassa, sem glória, de Osório Lopes.[5] Pelo visto, eram controvérsias de diferentes escalas de azedume, de diatribes e de animosidades, sustentadas entre intelectuais brasileiros, não só poetas e ficcionistas, como também críticos, historiadores, gramáticos, filólogos, linguistas discutindo, pois, controversas questões e temas, sendo principalmente aqueles relacionados à nossa formação literária, à autonomia de nossas letras, à nacionalidade literária, à língua literária brasileira, temas, de resto, amplamente estudados Afrânio Coutinho na obra A tradição afortunda.[6]
Fatos semelhantes a estes nos fazem pensar no mesmo problema enfrentado por Lima Barreto, a quem uma certa crítica andou afirmando sem claras razões linguísticas nem tampouco estéticas ser o autor de O triste fim de Policarpo Quaresma um escritor “displicente’ e “incorreto,” quando esses alegados motivos não passam de um julgamento crítico que não entendeu a base estético-literário-linguística da fase de transição de Lima Barreto, a que a história literária brasileira denomina Pré-Modernismo.
Mário de Andrade, sobretudo com o grande marco de inovações linguístico-estético-literárias, que foi Macunaíma, situar-se-ia neste mesmo tipo de debate, guardadas as mudanças de tempo e de formas renovadas de elaboração ficcional ou poética desencadeadas pelo Modernismo de 1922, o qual esteve exposto a severas críticas no tocante ao uso da linguagem literária.
Na sua primeira fase iconoclasta, derrubando valores estéticos e formais dos dois maiores gêneros literários, o ficcional e o poético, o Modernismo reagiu profundamente a um tradicionalismo resistente a rupturas na obra literária, sobretudo no uso da linguagem literária ainda presa à ideia de que “escrever bem” em literatura equivale à submissão irrestrita a regras da gramática normativa e não a processos criativos e experimentais do fenômeno literário.
Após fazer estas rápidas digressões nos três parágrafos anteriores, convém, ademais, salientar que, por ser assim tão amplo e variado nos seus objetivos e no seu alcance, já alguém afirmou ser o Romantismo um movimento literário que, por agregar tantos traços culturais sob a égide da liberdade e de impulsos subjetivos de caráter nacional e universal, i.e., de contestação a qualquer tentativa de oprimir a individualidade, seja artística, seja, seja social, seja econômica, seja filosófica, seja religiosa, seja moral, legou, ao longo dos tempos, um substrato de um estilo e forma de pensamento sem tempo datado ou, consoante bem sintetiza, o ensaísta e historiador Massaud Moisés: “De certo modo, a revolução romântica não findou ainda...” [7]
Todos os outros movimentos literários e artísticos posteriores, inclusive as vanguardas do final do século XIX, ainda assinala aquele autor:
(...) não raro traem o afã de ressuscitar o impulso dos princípios do século XIX, evidente na recusa de tudo quanto possa constranger a liberdade criadora. Acrescente-se, por fim, que os padrões de cultura inaugurados com a ascensão da Burguesia ainda estão vivos, o quadro dessa permanência se completa e se define. [8]
Basta mencionar que o carro-chefe do seu longo e controvertido debate convergiu para candentes e decisivas questões suscitadas por esse movimento e geradoras de polêmicas: o nacionalismo literário, a discussão da identidade nacional, o problema do português do Brasil, sobretudo na forma como deveria se comportar a língua literária em relação ao português lusitano, de vez que o Romantismo constitui o primeiro grande movimento de ruptura com as letras portuguesas, além de revigorado pelas mudanças históricas consolidadas pela conquista de nossa autonomia política na imagem emblemática do Grito do Ipiranga.
Na história da literatura brasileira, estas querelas que eclodiram no século XIX, consoante frisamos no início deste ensaio, surgiram também no início do século XX, nos anos 1940 [9]– período fértil em polêmicas entre escritores brasileiros -, nos anos 1950, e podemos estendê-las até os princípios dos anos de 1960. E não estamos incluindo aqui as pelejas de natureza literária, filosófica e religiosa que ainda podem ser rastreadas em alguns estados brasileiros fora do eixo Rio-São Paulo, as quais, pela distâncias geográficas, não chegaram ao conhecimento mesmo de especialistas.
De modo geral, os próprios movimentos literarios já por si sós contêm, por seu caráter de renovação versus tradição, suficientes materiais com traços polêmicos ou controversos, ou seja, a sempre velha história dos novos querendo desbancar os mais velhos nesta eterna luta de Sísifo entre a exaustão das formas estéticas e o seu ersatz por novas visões estético-artísticas.
Entretanto, a polêmica é um fenômeno que se registra em qualquer literatura e em qualquer época da História. No exemplo brasileiro as polêmicas sempre estiveram presentes, servindo de forte combustível para que contendores afiassem seus instrumentos de ataques e revides, primeiro no plano intelectual e, em seguida, conforme a natureza e o grau da querela, passavam ao desforço pessoal e se transformavam, por vezes, em hostilidades passageiras ou até duradouras; neste último caso, se configura, entre outras, a polêmica travada entre Afrânio Coutinho e Álvaro Lins nos anos de 1940, 1950 e 1960 aproximadamente.
[1] Cf. SÁFADY, Naief. Verbete “Polêmica.” In: PRADO COELHO, Jacinto do. (Dir.). Dicionário de literatura– Literatura brasileira, Literatura portuguesa, Literatura galega e Estilística literária. v..2. 3. ed..Porto: Figueirinhas, 1973, p.838-839. Consultar também PAULO PAES, José. e MOISÉS, Massaud. (Org. e Dir.)Pequeno dicionário de literatura brasileira. 2.ed. rev. e ampliada por Massaud Moisés. São Paulo: Cultrix, 1980. Verbete “polêmica,” da autoria de Joel Pontes.
[2] Idem, ibidem.
[3] BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2001, p. 135..
[4] COUTINHO, Afrânio (Org.).A polêmica Alencar-Nabuco. 2. ed. Introdução de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1978, p. 5-13. Sobre o tema de polêmicas na literatura brasileira, consultar CASTELLO, José Aderaldo. A polêmica sobre “A Confederação dos Tamoios.” São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1953; ver também VENTURA, Roberto. Estilo tropical: História cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo:Companhia das Letras, 1991.
[5] LOPES, Osório. Carcassa sem glória – Apontamentos sobre Agripino Grieco. Rio de Janeiro: Livraria Boa Imprensa, s.d.
[6] COUTINHO, Afrânio. A tradição afortunada. (O espírito de nacionalidade na crítica brasileira). Rio de Janeiro: José Olympio/Editora Universidade de São Paulo, 1960. Coleção Documentos Brasileiros, nº 127. Importante obra de Coutinho com Prefácio de Afonso Arinos de Melo Franco.
[7] MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 1992, p. 465.
[8] Idem, ibidem.
[9] MENESES BOLLE, Adélia. Bezerra de.A obra crítica de Alvaro Lins e su função histórica.Petrópolis: Vozes, 1979, p. 47.