Poesia marginal, máquina de futuros

Celebrados em exposição no IMS, poetas brasileiros dos anos 1970 definiram para a posteridade um estilo marcado pela não adequação a restrições políticas, literárias e mercadológicas

Por Frederico Coelho



Em “Rua de mão única”, Walter Benjamin afirma que todo grande escritor faz suas combinações em um mundo que vem depois dele. O filósofo boêmio das ruas europeias lia Baudelaire e encontrava em seus versos uma Paris convulsa e fora do seu tempo. Para ele, o poeta falava de uma cidade que ainda não existia e só iria se concretizar em 1900.

Dilatando a potência poética desse fragmento, podemos afirmar que a literatura é uma grande máquina de futuros possíveis. Máquina cujas engrenagens, mais velozes que a energia que as alimenta, geram descompassos inevitáveis com seu tempo. Nesse sentido, a poesia marginal brasileira dos anos 1970 é, até hoje, uma máquina de futuros.

A abertura e o estudo sistemático de arquivos literários dos poetas do período (como Ana Cristina Cesar no Instituto Moreira Salles ou Cacaso na Fundação Casa de Rui Barbosa), a reunião de obras completas (como os livros de Cacaso, Chacal e Francisco Alvim pela coleção Ás de Colete), as dissertações e teses que surgem ao redor do país, tudo isso faz com que um tema visto por décadas como “menor” ou “menos importante” do que as poéticas das décadas de 1930 e 1960 ganhe massa crítica.

A poesia marginal pode, portanto, ser estudada a partir de abordagens que vão além dos estereótipos de uma poesia da “curtição”, do “desbunde” ou do “mimeógrafo”. Essas expressões classificatórias, muitas surgidas ainda na época em que os poemas eram publicados, tiveram sua validade expirada. Atualmente, o debate crítico ao redor do tema envolve intrincadas trajetórias históricas, ligadas não apenas à literatura, mas principalmente ao campo mais amplo da cultura brasileira. Podemos, por exemplo, abordar o tema a partir do seu debate estritamente literário. Professores universitários e poetas travaram contatos e conflitos ao redor das práticas letradas que circulavam nos anos 1970. Esse debate ligado ao âmbito da crítica literária pode nos levar a outro, cada vez mais importante, cuja investigação se interessa pela relação da poesia marginal com a indústria cultural de seu tempo. Afinal, essa é a poesia que surge de uma geração televisiva, influenciada pela música popular, pelo cinema e pelo teatro dos anos 1960. Uma geração imersa em uma cultura de massas e nas primeiras tecnologias de reprodutibilidade eletrônica que circulavam entre nós. Tudo isso em pleno nacionalismo desenvolvimentista do regime militar. Há também, claro, o tema central da constituição de um sistema independente de produção, edição e distribuição de livros e coleções por parte de uma série de poetas. Sua autossuficiência produtiva abriu um profícuo debate sobre o mercado editorial brasileiro. Por fim, sem esgotar outras abordagens possíveis, temos os próprios poemas como objeto de apreciação crítica — do uso desabusado do verso livre ao poema-piada, da oralidade evidente até a síntese de certas tradições modernistas, da rejeição aos cânones normativos do verso (poesia concreta, poema-processo, poema-práxis e a tradição da engenharia de João Cabral de Melo Neto) à falta de rigor formal etc.

Em 1998, a crítica e professora Heloisa Buarque de Hollanda escreve um posfácio para a segunda edição de sua já histórica antologia “26 poetas hoje”, lançada em 1976 pela editora espanhola Labor. Vinte e dois anos depois, sua organizadora nos diz, maquinando futuros, que o conteúdo eclético porém certeiro dos poemas ali reunidos por ela (com o auxílio de Francisco Alvim e Cacaso) “ainda não disse tudo a que veio”. Em meio ao furacão de poemas e poetas que circulavam pelo Brasil do “general de ombros largos que fedia”, sonhado por Cacaso, e dos “píncaros de merda”, vislumbrados por Roberto Schwarz, seu livro conseguiu apresentar para a posteridade aquilo que a história literária brasileira passou a chamar de poesia marginal.

Na época do lançamento, a recepção foi diversa — e desconfiada. Em um debate na revista “José”, publicado ainda em agosto de 1976, essa recepção crítica desconfiada e ansiosa por definições fica evidente. Heloisa Buarque (organizadora), Ana Cristina Cesar, Geraldo Carneiro e Eudoro Augusto (poetas presentes na antologia) tentavam definir para os críticos Luiz Costa Lima, Sebastião Uchoa Leite (também poeta) e Jorge Wanderley um ponto em comum, uma origem, um “embasamento gerador” que movesse em uma mesma lógica os 26 poetas. O curioso do debate era o ímpeto classificatório que críticos e poetas (em menor grau) impunham a si mesmos ao discutir a antologia. Enquanto Costa Lima apontava a falta de reflexão crítica como um possível ponto de união (negativo) entre todas aquelas poéticas, Ana Cristina Cesar, discordando abertamente dele, sugeria como possível linha de força coletiva uma postura “anticabralina“ que, na sua visão, percorria de alguma forma todos os poemas do livro. A retomada do modernismo de 1922, a recusa dos formalismos das vanguardas concretas da década de 1950 ou até mesmo a atualização do romantismo brasileiro também foram arroladas como possíveis pontos de contato entre o ecletismo do grupo.

Só com o tempo percebemos que as fraquezas de momento da antologia (ecletismo, falta de coesão interna de um grupo histórico, precariedade de alguns poemas, tentativa de captar um momento ainda em movimento) são justamente sua potência posterior. O futuro comprovou a necessidade daquele retrato necessariamente sem moldura que, cada vez mais, quebra o peso de um “silêncio” ou de um “vazio” sobre os agentes da época e suas criações.

Talvez hoje seja possível vislumbrar, entre a variedade de poemas e poetas daquele período, uma certa linha de força, vibrando entre versos e reveses escritos e vividos por uma geração definida por algo a mais do que um recorte cronológico. Num país que atravessava um período marcado pelo excessivo controle político, poetas das mais variadas idades e origens constituíram um espaço de atuação cujo ponto em comum foi a não adequação.

Uma não adequação ao seu tempo de mortes e milagres. Uma não adequação ao clima de silêncios e responsabilidades compartilhadas por um suposto decréscimo (o vazio) na qualidade cultural do seu país. Uma não adequação que transtornou biografias, que escancarou a situação precária do poeta e do escritor em geral em sua relação com o mercado editorial de seu tempo. Uma não adequação, enfim, de um poeta que trouxe dilemas para a crítica literária do período, que reivindicou uma revisão de práticas e saberes acadêmicos nas universidades, que embaralhou filiações históricas e promoveu a abertura de caminhos ainda não trilhados. Lançaram os dados de futuros do pretérito que, como nos poemas de Baudelaire, tornaram-se futuros do presente. Se a poesia marginal não nos deu um estilo definido no âmbito do poema, sem dúvida definiu para a posteridade um estilo de poeta.


Frederico Coelho é pesquisador, ensaísta e professor da PUC-Rio.