ENTREVISTADO:

Antônio Carlos Rocha

Dílson Lages - Para justificar a escolha da metodologia empregada para estudar o texto literário, o senhor recorre às influências da cultura oriental sobre filósofos da linguagem. Essas influências se construíram, ao seu ver, motivadas precisamente por quê?

Antônio Carlos Rocha - Em primeiro lugar, muito obrigado pela oportunidade de estar aqui, colaborando com este site. Você e os demais que escrevem estão todos de parabéns. Bem, eu já me dedico ao estudo e pesquisa da cultura oriental há 40 anos. Com o passar do tempo fui verificando que tais estudos, no exterior também eram aplicados em termos acadêmicos. Nomeadamente, fui verificando que nos EUA, Canadá, Inglaterra, França, Alemanha e em outros países, uns chamavam de Pensamento Asiático, outros de Estudos Orientais, Filosofia Indiana, Filosofia Chinesa e isso foi me confortando pois eu queria aplicar tais estudos ao campo das Letras, que é a minha formação. No início tive uma certa dificuldade pois alguns professores julgavam ser alienação a minha pesquisa, pensavam que se tratava de moda ou de esoterismo superficial, mas foi só no começo, com o passar do tempo não apenas aceitaram, mas também incentivaram, me abriram portas e horizontes, viram que era algo sério e inovador em termos de Brasil. Diga-se de passagem que, em termos de Brasil, a originalidade se deve à Cecília Meireles, nossa grande escritora, jornalista e poeta da Literatura Brasileira. Ela foi a pioneira. Em 1935, Cecília foi professora de Literatura Oriental, na antiga  UDF - Universidade do Distrito Federal, hoje a UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde estou realizando o meu pós-doutorado, justamente sobre esta face "oriental" da Cecília Meireles.

Quando eu ainda estava na Graduação, numa aula de Teoria Literária, em 1978, o professor começou a falar de Martin Heidegger, o grande pensador alemão do século XX, e eu percebi que ali, no pensamento, na vida e na obra de Heidegger tinha algo a ver com o Oriente. Foi uma intuição. Comecei então a esboçar uma "leitura zen" da Literatura e da Arte. Fui então compilando e catalogando nomes significativos que tratavam do tema. Por exemplo, o grande Umberto Eco, em seu livro Obra Aberta, ele tem um extenso capítulo sobre o Zen e o Ocidente. Além dele, fui vendo que grandes pensadores, escritores, filósofos e teóricos do Ocidente estavam estudando e pesquisando sobre o Pensamento Asiático e aplicando nas universidades.

Minha tese de doutorado, defendida na UFRJ chama-se "Heidegger e o Sagrado: uma leitura budista", estou agora procurando um editor para a mesma.

O mundo hoje não comporta mais essa divisão entre Oriente e Ocidente, ela geograficamente existe, culturamente é fato, mas em termos de conhecimento, em termos do saber é altamente recomendável que estudemos e aprendamos uns com os outros. No meu livro publicado pela Editora Madras, de São Paulo, em 2004,  Zen-Budismo e a Literatura, que é a minha dissertação de mestrado na UFRJ, eu cito alguns pensadores ocidentais que direta ou indiretamente tiveram influência do Oriente.

Vejo que essas influências foram motivadas, justamente, porque esses grandes filósofos perceberam que o mundo é um só. Há uma frase clássica que eu gosto de citar. Nos anos 1980, o professor francês Roger Garaudy de filosofia na Sorbonne, en entrevista ao jornal O Globo, declarou que havia chegado ao topo da carreira universitária, mas compreendeu que só conhecia o Ocidente, ou seja, o saber dele era limitado. Então ele começou a ver a importância do pensamento oriental, completando assim a nossa visão de mundo: Ocidente e Oriente.

 

Dílson Lages -Em seu projeto de associar literatura e budismo, a partir do discurso acadêmico, o senhor afirma que o propósito da investigação da obra literária "não é utilitarista, não é lógica, é zen".  Em que consiste a análise do texto literário numa perspectiva zen ?

Antônio Carlos Rocha -  De fato, o pensamento zen é de uma beleza impressionante. Mediante as minhas pesquisas vi que o zen é uma ferramenta importante para a compreensão do texto literário. Não estou generalizando, se tratava no sentido específico da poesia de Gilberto Gil que eu estava pesquisando. As letras das músicas do cantor e compositor Gilberto Gil passei a estudá-las sob a ótica zen. Vi que tais letras, portanto, tais textos literários nos remetiam a uma reflexão sobre o ser, sobre a vida, sobre a existência.

 

Dílson Lages - As questões de ritmo e respiração, práticas meditativas zen, se relacionam, por essência, à poesia?  Repetindo: a poesia é, por natureza, zen?

Antônio Carlos Rocha -  Sim, poesia é meditação. Poesia é zen! Zen é arte ! É uma forma de ser e estar no mundo, completo aí com outros verbos de ligação: ficar, permanecer. E o verbo de ligação é o tal "religare". Nos ligarmos a um fator transcendente-imanente, que não está lá longe, mas no aqui e no agora. Fazer poesia é meditação. Ler poesia é meditação. É preciso vivenciar tais experiências poéticas. Há diversos estudos, no exterior, enfocando a natureza poética do zen.

Dílson Lages - Que outras marcas da poesia, além do ritmo, estimulam leituras a partir da cosmovisão zen?

Antônio Carlos Rocha - Zen é vida, é respirãção, é arte, é poesia, deste modo, na antiguidade, os sábios zen perceberam que uma ótima forma de se praticar o zen era através da expressão das artes plásticas, da música, da escultura, das literaturas em geral, do cinema, mais recentemente falando. Na minha tese de doutorado há um capítulo onde falo do filme Rashomon, do japonês Akira Kurosawa, que aliás recomendo a todo mundo. Nesse filme há uma profunda reflexão-meditação sobre a vida, sobre a arte, sobre  a verdade. É um filme em preto e branco. Heidegger viu esse filme e ficou maravihado, ela gostava muito da cultura nipônica.

 

Dílson Lages - Recuperando indagação já feita há pouco, quais princípios teóricos o senhor utiliza, por exemplo, quando mergulha nos poemas-canções de Gilberto Gil?

Antônio Carlos Rocha -  Escolhi oito poesias do Gil, de um período que ficou conhecido como "contracultura". Anos 1970. Era o tempo da ditadura. E o poeta Gil nos faz ver que uma das formas de se enfrentar um período de excessão é através da arte. Partindo dos princípios da tradicional Teoria Literária, fiz uma leitura livre, uma interpretação, juntando um pouco de sociologia da literatura, em função da época da ditadura, com sociologia da religião, pegando o zen-budismo.

Dílson Lages - Como a cultura zen se faz ver nos poemas-canções de Gilberto Gil?

Antônio Carlos Rocha -  Na minha dissertação de mestrado eu escolhi essas oito canções do Gil porque são poemas-canções. Existem muitas outras letras onde podemos identificar esses poemas, mas fiquei analisando o período em que ele esteve preso e, sabiamente, ele nos sugere, através das letras que, uma forma artística de sobreviver em um tempo difícil é a poesia. E o zen também fala isso e tanto asim o é que há uma corrente japonesa que se chama PL - Perfeita Liberdade cujo primeiro preceito é "Vida é Arte". Quer dizer, uma das possíveis saídas para essa crise econômica que anda por aí está na arte, na medida em que tornarmos o nosso viver uma forma de arte, no sentido mais amplo possível, teremos condições de ter vivências, intuições e compreensão de como transformar a crise em criatividade. Citei a PL porque gosto muito dessa linhagem japonesa. O fundador foi um monge zen, lá nos primórdios do século XX.

 

Dílson Lages - O senhor se propõe a encontrar elementos na poesia de Gil que levam a pensar na condição de ser. Quais elementos o senhor encontrou? Qual "condição de ser" subjaz à leitura da poesia de Gil?

Antônio Carlos Rocha -  Considero o Gilberto Gil um dos grandes poetas da Língua Portuguesa. Tão grande quanto Camões. As letras das músicas de Gil nos remetem a uma reflexão sobre a nossa condiçõa humana. O zen nos diz que o satóri, isto é,  experiência da iluminação que o Buda teve, o insight que a psicanálise fala, bem pode ser "explicitado" pela poesia. Eu coloco esse explicitado entre aspas porque o próprio zen recomenda o cuidado com as palavras. Em um artigo que publiquei na coluna Estudos & Literaturas do magnifico Entre Textos que tem como título "Um Diálogo com Chuang Tzu hoje" cito o próprio Chuang Tzu, um sábio taoísta, que tem muito de zen. Ele diz que gostaria de conversar com uma pessoa que tivesse esquecido as palavras. Isso é profundamente zen, é difícil de explicar com as palavras, só vivenciando, só experienciando.

 

Dílson Lages - A cultura zen propõe a compreensão do desejo. Como isso se aplica à leitura da poesia por esse caminho?

Antônio Carlos Rocha -  Parabenizo pelas perguntas inteligentes. Nota 10 ! Você tem razão. A cultura zen nos recomenda a compreensão do desejo, mas no Ocidente temos a tendência de pensar que desejo é só no sentido de sexo. E o Zen nos mostra que tudo na vida é desejo, desde beber um copo de água, responder esta entrevista etc. Até o último suspiro estaremos envoltos pelo desejo. E a poesia vai nos mostrar  os caminhos e descaminhos por onde passam os nossos desejos, quaisquer que sejam eles. Para o zen, o não-desejo também é uma forma de desejo. A leitura da poesia através do zen, nos permite vivenciar a experiência do ato de ler. E como se fosse, e de fato o é, a leitura de poesia é uma forma de meditação.Então compreenderemos o desejo e fica a nosso critério concretizá-lo ou não, sabendo que tanto o realizar o desejo, quanto não realizar implica desdobramentos. É esta a sabedoria que a leitura da poesia e o zen nos propõe.

Dílson Lages - O senhor afirma que, segundo a cultura zen, o "silêncio é movimento". Como assim?

Antônio Carlos Rocha -  O Zen fala muito em vazio e em silêncio, mas é preciso ver que este vazio não é oco, ele é cheio, ele é pleno, ele é completo. É justamente o contrário do que pensamos. O vazio é repleto de potencialidades, de possibilidades. Uma imagem que costumo usar para tentarmos visualizar este vazio é a noção de conjunto que vem da matemática. Um vazio é um conjunto de "coisas", de "elementos", o vazio é um conjunto de subconjuntos. Quanto ao silêncio, o zen diz que ele não é estático, não é parado, pois nada, na vida, é parado, tudo é impermanente, tudo é dinâmico. tudo está sempre em movimento, assim sendo, verificamos que há um "barulho"  no silêncio, no silêncio há som, silêncio não é morte, silêncio é vida, o silêncio tem voz; aliás, o grande poeta português Fernando Pessoa traduziu um texto clássico da Teosofia, se chama "A voz do silêncio", este livro foi publicado aqui nos anos 1970, pela editora Civilização Brasileira, agora está esgotado. Teosofia é uma forma popular de Budismo e Pessoa gostava muito, pois ele era o tradutor da fundadora da Sociedade Teosófica em Portugal, a Helena Petrovna Blavatsky.

Dílson Lages - O senhor publicou dez livros acerca do Budismo. Quais leituras o senhor propõe a quem deseja se iniciar no assunto?

Antônio Carlos Rocha -  Sugiro inicialmente o meu livrinho O Que É Budismo, editora Brasiliense, o nº 113, da coleção Primeiros Passos. Depois O Tao da Física, do austríaco radicado nos EUA, Fritjof Capra, editora Cultrix. E também um livro excelente organizado pelo Haroldo de Campos, Ideograma: Lógica, Poesia e Linguagem, em co-edição da USP - Universidade de São Paulo com a Editora Cultrix. Mais uma vez agradeço a oportunidade da entrevista.