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AOS AMIGOS

 

 

 

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.

Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,

com os livros atrás a arder para toda a eternidade.

Não os chamo, e eles voltam-se profundamente

dentro do fogo.

— Temos um talento doloroso e obscuro.

Construímos um lugar de silêncio.

De paixão.

 

de Lugar (Escolha de Vasco David’)

 

 

 

alguém salgado porventura

te

toca

entre as omoplatas,

alguém algures sopra quente nos ouvidos,

e te apressa, enquanto corres

algumas braças acima

do chão fluido, leva-te a luz e subleva,

tão aturdidos dedos e sopros,

até ao recôndito,

alguma vez te tocaram nas têmporas e nos testículos, alto,

baixo,

com mais mão de sangue e abrasadura,

e te cruzaram nesse furor,

e criaram, com bafo

ardido, ásperos sais nos dedos, e te levaram,

a luz corrente lavrando o mundo,

cerrado e duro e doloroso, acaso

sabias

a que domínios e plenitudes idiomáticas

de íngremes ritmos, que buraco negro,

na labareda radioactiva,

bic cristal preta onde atrás raia às vezes

um pouco de urânio escrito

 

de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de Vasco David’)

 

 

 

BICICLETA

 

 

 

Lá vai a bicicleta do poeta em direcção

ao símbolo, por um dia de verão

exemplar. De pulmões às costas e bico

no ar, o poeta pernalta dá à pata

nos pedais. Uma grande memória, os sinais

dos dias sobrenaturais e a história

secreta da bicicleta. O símbolo é simples.

Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais —

lá vai o poeta em direcção aos seus

sinais. Dá à pata

como os outros animais.

 

O sol é branco, as flores legítimas, o amor

confuso. A vida é para sempre tenebrosa.

Entre as rimas e o suor, aparece e des

aparece uma rosa. No dia de verão,

violenta, a fantasia esquece. Entre

o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce

sabiamente. E a bicicleta ultrapassa

o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa

no instante da graça.

 

De pulmões às costas, a vida é para sempre

tenebrosa. A pata do poeta

mal ousa agora pedalar. No meio do ar

distrai-se a flor perdida. A vida é curta.

Puta de vida subdesenvolvida.

O bico do poeta corre os pontos cardeais.

O sol é branco, o campo plano, a morte

certa. Não há sombra de sinais.

E o poeta dá à pata como os outros animais.

 

Se a noite cai agora sobre a rosa passada,

e o dia de verão se recolhe

ao seu nada, e a única direcção é a própria noite

achada? De pulmões às costas, a vida

é tenebrosa. Morte é transfiguração,

pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta

de rosa interior dá à pata nos pedais

da confusão do amor.

Pela noite secreta dos caminhos iguais,

o poeta dá à pata como os outros animais.

 

Se o sul é para trás e o norte é para o lado,

é para sempre a morte.

Agarrado ao volante e pulmões às costas

como um pneu furado,

o poeta pedala o coração transfigurado.

Na memória mais antiga a direcção da morte

é a mesma do amor. E o poeta,

afinal mais mortal do que os outros animais,

dá à pata nos pedais para um verão interior.

 

de Cinco Canções Lunares (Escolha de Hugo Pinto Santos)

 

 

 

 

 

que eu aprenda tudo desde a morte,

mas não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,

colher, roupa, caneta,

roupa intensa com a respiração dentro dela,

e a tua mão sangra na minha,

brilha inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha,

no toque entre os olhos,

na boca,

na rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas,

fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,

o canto comum-de-dois,

o inexaurível,

o quanto se trabalha para que a noite apareça,

e à noite se vê a luz que desaparece na mesa,

chama-me pelo teu nome, troca-me,

toca-me

na boca sem idioma,

já te não chamaste nunca,

já estás pronta,

já és toda

 

de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de Hugo Pinto Santos)

 

 

 

 

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,

quando alguém morria perguntavam apenas:

tinha paixão?

quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:

se tinha paixão pelas coisas gerais,

água,

música,

pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,

pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,

paixão pela paixão,

tinha?

e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,

se posso morrer gregamente,

que paixão?

os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,

os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,

homens e mulheres perdem a aura

na usura,

na política,

no comércio,

na indústria,

dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,

trémulos objectos entrando e saindo

dos dez tão poucos dedos para tantos

objectos do mundo

¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,

pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,

e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,

palavra soprada a que forno com que fôlego,

que alguém perguntasse: tinha paixão?

afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,

ponham muito alto a música e que eu dance,

fluido, infindável,

apanhado por toda a luz antiga e moderna,

os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela,

a paixão grega