Ilustração: “Obelisco de Memória e Chafariz do Piques – Séc. XIX”, de José Wasth Rodrigues (1952) – da Coleção de Arte da Cidade.
Ilustração: “Obelisco de Memória e Chafariz do Piques – Séc. XIX”, de José Wasth Rodrigues (1952) – da Coleção de Arte da Cidade.

[Cláudio Trasferetti]

Anhangabaú


(Affonso Schmidt)


No Piques, vagando à-toa, 
é raro quem não pressinta 
uma toada indistinta 
que, sob as pedras, ressoa.
Conta moedas, tilinta, 
como refrão de uma loa, 
a fonte exilada e boa, 
há muitos anos extinta.
Sua alma que ali revoa, 
de céus e de ares faminta, 
repete a cada pessoa
uma novela sucinta: 
noturnos, capas, garoa, 
1830...
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Li esse belo poema de Affonso Schimidt no sábado de manhã, no mural de Dinarte Alburquerque Filho, a quem agradeço essa revelação. O poema me impressionou tanto por sua forma quanto por seu conteúdo e me fez divagar durante o fim de semana.


Interesso-me muito pela história das cidades, especialmente a de São Paulo, e sempre fico sacaneado pela maneira, muitas vezes deliberada, com a qual o urbanismo vai implodindo, soterrando ou aniquilando aos poucos construções e espaços significativos à população. Além disso, abrimos mão de córregos e rios em favor de ruas e avenidas como se isso fosse algo inofensivo, impassível de punição. Imagine a fome “ de céus e de ares” que sente o Anhangabaú!
Schimidt, no poema, alude à fonte do chafariz do Piques, lugar emblemático da São Paulo antiga. Historiadores se debatem sobre a origem desse nome. Teria origem no obelisco que tem formato de lança, que antigamente também era chamada de pique? Pique como sinônimo de ladeira íngreme? Da brincadeira infantil parecida com pega-pega? Atalho estreito na mata ou picada, que também recebia o nome de pique? Ou ponto de encontro ou tumulto?


O fato é que a fonte foi desativada. Abandonado, o obelisco sobrevive por milagre e pela boa vontade de alguns, rodeado pelos sem-tetos do centro. Diz um escritor que o obelisco foi a primeira coisa inútil feita pelos urbanistas de São Paulo, querendo dizer com isso que ele foi concebido como um enfeite e as pessoas só querem enfeitar um lugar que estimam, que chamam de seu. O obelisco teria sido um divisor de águas na história da cidade: antes dele era apenas um lugar de passagem, um posto avançado, um portal para o sertão e depois passou a ser um lugar onde muitas pessoas passavam a vida inteira e tinham sentimentos de pertencimento. Não sei se o escritor tem ou não razão. Talvez a utilidade do obelisco resida justamente na ativação de memórias.


A alma penada da fonte abandonada evocada pelo Schmidt representa a voz de tanta gente que orbitava aquela ladeira: habitantes, viajantes, passantes, mascates. Ele fala em moedas, dessas que são jogadas em fontes em busca de boa sorte ou boa saúde desde os tempos da Coventina, deusa celta dos poços e das fontes, que ainda era cultuada na fase romana da Inglaterra. Por trás de cada moeda que tilinta numa fonte existem histórias e desejos humanos. É bem provável que existisse o hábito de jogar moedas na fonte do Piques.


Schmidt fala, muito poeticamente, que é raro quem não pressinta a toada da fonte extinta, mas, na verdade, acho que a maioria das pessoas que passa pela Ladeira da Memória hoje em dia não pense nos tropeiros, nos escravizados, nos indígenas, nos jesuítas e nos bandeirantes que matavam a sede por ali. Estão mais preocupadas em namorar as poucas vitrines que ainda restam na cidade, ora tristes porque a chuva as pegou de surpresa, ora felizes porque a chuva já passou, como diz a bela canção “Ladeira da Memória”, de ZéCarlos Ribeiro. E assim, de soterramento em soterramento, seguimos sem grandes lastros...