Cunha e Silva Filho


                           No caldeirão geral e estonteante que são as imagens e assuntos da TV, há uns dois ou três dias me surpreendi com uma reportagem que me levou até as lágrimas: o calvário de Pedro. Mecânico de profissão, da Baixada Fluminense, mulato, não velho nem moço, ganhando uns seiscentos reais mensais  Surgia na tela, durante a matéria da reportagem, com um livro que deve/devia ser lido por todo brasileiro alfabetizado, ou não o sendo, para vergonha de uma nação, que possa ouvir de alguém ler algumas partes cruciais em que a Constituição Federal do Brasil em vigor proclama como obrigações impostergáveis do Estado brasileiro nos trechos em que fala de proteção a todos que nascem nesta pátria . É no ponto em que o mecânico lê, de vive voz, o que o país oficial deveria fazer em benefício de seus cidadão que o tom dramático do relato  atinge um clímax, ou seja, quando tudo que lê teoricamente, na prática, não se obedece por parte do próprio governo federal. É letra morta, lei que não pega, que não deu certo na sua inteireza e  universalidade. Ou nas palavras incisivas e indignadas do mecânico,: “ Tudo isso que leio na Constituição não passa de hipocrisia da Carta Magna!”
                      Pedro se queixa de um problema muito grave. Ele está sofrendo de má circulação numa das pernas que já dá sinais de chagas com a possibilidade de entrar em estado de gangrena. Não foi por descaso que chegou a esse lamentável estado de saúde. Foi por desídia do sistema de saúde pública do Rio de Janeiro, diria, tanto do estado quanto do município. Foi mais ainda, foi por zelo estúpido da burocracia, da falta de empenho até de funcionários subalternos, quando, em cada hospital, sua pretensão lhe era sempre vedada, alegando-se que ali não se podia realizar tal tratamento, que fosse para um posto na Pavuna, bairro carioca, e lá obtivesse o pedido oficial, carimbado, timbrado, assinado e o escambau! 
                    Pedro obedecia. Pacientemente, trazia de novo ao hospital, o documento de encaminhamento para internação ou tratamento ambulatorial. Hospital, em Ipanema, por sinal, de referência que, da mesma forma que tantos outros, por ele percorridos em vários bairros, da Zona da Baixada, passando pelos subúrbios, Zona Norte até a Zona Sul, não lhe deu atenção, alegando uma funcionária que o seu caso não configurava tratamento de alta complexidade, especialidade central dessa instituição de saúde. Pedro foi, assim humilhado -  numa das vezes  bateram-lhe com a porta na cara! - na sua a dignidade de homem, de ser humano, de brasileiro, de eleitor, de cidadão. 
                 Este último hospital ainda lhe dissera que o seu encaminhamento não valia nada, pois era um simples papel sem timbre, quer dizer, colocou, ademais, sob suspeita o doente, pois, para qualquer leigo na área, Pedro, o mecânico, um brasileiro pobre e sacrificado, informa  que peregrinou desde o posto de saúde do seu bairro, procurando um encaminhamento médico para fazer o tratamento da má circulação em algum hospital público do Rio de Janeiro e tudo que conseguira até o momento da reportagem fora debalde. Marcava-se num hospital uma data para o início do tratamento e, no dia combinado, nada de concreto acontecia.
                Em resumo, o caso aflitivo de um brasileiro que não goza da proteção do governo num dos seus deveres vitais: o direito a ter saúde e, portanto, o direito à vida.
               O calvário de Pedro não é mais do que o símbolo malfezejo de um país que, até hoje, tem transformado suas obrigações para com o cidadão em casos de polícia. Isso, sim pode se definir como discriminação, exclusão, desrespeito e descaso com o povo brasileiro.
              Quando o Presidente, o Vice-Presidente, ministros, congressistas, ou outras autoridades do Planalto adoecem, a história é outra: baixam logo aos hospitais de primeiro mundo, quando não, são imediatamente transferidos para grandes hospitais de países adiantados, em geral os EUA.
              Por isso, tenho lá minhas dúvidas quanto a Encontros de ex- isso, ex- aquilo para fins de debelar a pobreza no país, quando para isso são necessárias mudanças estruturais complexas que envolvem divisão de riquezas de ricos para miseráveis. Mudanças que não se sustentam com discursos ou promessas de cúpulas formadas das elites dos setores econômico-financeiros e da política nacional, sobretudo agora, no terceiro período em que o PT tem as rédeas do governo e não está nada confortável com os numerosas escândalos surgidos no seio do seu próprio espaço partidário ou em coligações com as famigeradas bases aliadas desde quando assumiu o poder 
           Diante de uma nação que está afundada em graves crises setoriais, educação, saúde, extrema violência, segurança, agravadas pelo fantasma da impunidade, que parece não querer chegar a um fim, seria ingenuidade pensar-se que tais belos objetivos propalados por diferenças político-ideológicas, serão de fato colimados. Seria possível que, da noite para o dia, um país amanhecesse com suas elites acostumadas às imperiais regalias se transformando  em salvadores dos seus próprios erros e desmandos? Seria muito ingênuo se nisso acreditasse.