[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Por que há pessoas inteligentes dos dois lados quanto à avaliação de comportamentos relativamente ousados? Por que há pessoas de boa formação ético-moral dos dois lados quando se avalia comportamos permissivos ou palavreados mais livres? Por que em nossa sociedade, mesmo todos nós estando sob uma cultura relativamente unificada há tempos, discordamos aqui e acolá sobre vocabulários e práticas na vida moral cotidiana?

O “politicamente correto” está no meio dessa disputa. Caso não houvesse fissuras em avaliações, ele não seria polêmico, talvez nem mesmo existisse. A idéia do “politicamente correto” é basicamente uma só: há um modo correto de se viver na polis, e este modo é aquele que puder levar todos os habitantes a tornarem o convívio o mais suave possível, e isso deve começar pelos vocabulários. Assim, nessa idéia, tudo se passa segundo o propósito inicial do capitalismo: tornar a vida da polis, agora mais ainda centrada no mercado, a menos conflituosa possível, de modo que ninguém se ofenda o suficiente a ponto de parar o comércio.

Pensando dessa forma, o “politicamente correto” nada é senão uma sofisticação do liberalismo: que ninguém tenha motivos para abandonar a compra-e-venda e inviabilizar a nova alma da cidade, o mercado. O “politicamente correto” é um subproduto contemporâneo da Carta sobre a tolerância de Locke: que reine o respeito entre os príncipes europeus, que se estanquem as guerras de religião – mas que os negócios não estanquem. Que a Idade Média não mais volte, pois se houve algo de ruim nela, foi única e exclusivamente a sua capacidade de fazer as cidades não funcionarem como cidades.

Quando o “politicamente correto” surgiu nos Estados Unidos, ele imediatamente recebeu críticas jocosas. E não era para menos. Ninguém de bom humor iria perder a chance de criar chistes com as cobranças do movimento. Pois o “politicamente correto” nunca conseguiu ser uma tese unicamente contra as atitudes grosseiras e agressivas; desde o seu início ele também foi uma advertência de uma tia velha para algo que nenhum humorista poderia deixar passar: a chamada de atenção em favor da “moral e bons costumes”, agora vinda de um grupo que até então não era de falar sobre tais coisas. Era a versão à esquerda de algo que, até então, só a direita tinha a mania de fazer: mandar passar pimenta na boca de crianças que usam de palavrão.

Ora, isso só poderia, mesmo, nascer nos Estados Unidos, uma nação que desde o seu início teve um de seus lados voltado para a prática antes do cultivo exacerbado da religião do que efetivamente para a liberdade religiosa prometida pelo nome “América”. Assim, “pitos morais” nunca deixaram de existir nas famílias americanas, em exagero, ao menos de um lado dos colonizadores, e isso acabou deslizando também para a esquerda, ainda que com outro conteúdo. Foi assim que boa parte da esquerda perdeu seu liberalismo, característico da chamada velha esquerda social democrata e deweyana, mas um tanto que soterrado pela nova esquerda, adoradora do marxismo cultural ou até mesmo de teses descabeladas, economicistas, de um Chomsky. Os mais libertários, vendo que a esquerda os havia abandonado, alimentaram os cartunistas, de modo que a América não perdesse sua característica contraposta: a irreverência. Para estes, o grito de guerra foi este: que os cartunistas preservem o senso crítico de nossa sociedade, agora não só contra a direita e os conservadores, mas também contra os liberais de araque e os progressistas, que então adotaram a prática do “pito”.

Paulatinamente, o “politicamente correto” foi ganhando espaço, é verdade, mas junto dele também foi se formando um poço de exageros e cacoetes que deixaram os escritores e desenhistas mais inteligentes com o maior apetite. Todavia, em hipótese alguma se poderia dizer que essas pessoas estariam a favor das atitudes que o “politicamente correto” gostaria de conter, eliminar ou mudar. O que tais pessoas estavam denunciando é que o “politicamente correto” havia desaprendido uma lição que os melhores filósofos e sociólogos haviam ensinado a todos nós, aquela estudada tão bem por Norbert Elias: uma sociedade é civilizada não quando adota cegamente uma atitude de suavidade nas relações e, sim, quando é capaz de criar espaços, pequenos e grandes, para a transgressão dos bons comportamentos, dentro de um plano relativamente razoável. A praia é um lugar assim. Eu explico, na linha de Elias.

As pessoas no Ocidente vão à praia quase que nuas e, no entanto, isso não causa nenhuma grande polêmica ou espanto. Nenhum homem na praia vai ter ereção diante de mulheres lindas praticamente nuas. Os corpos já estão educados ou, melhor dizendo, civilizados. Os instintos foram canalizados para uma convivência que não significa promiscuidade, mas, antes, alto grau de civilidade. O rapaz do interior, que nunca viu a praia e que foi educado sob costumes rurais, pode não saber se comportar na praia, pode se pegar com tesão manifesta pelas garotas ou pode simplesmente morrer de vergonha. Mas, dado o patamar cultural da vida urbana, logo assimilará o comportamento vigente. Aos poucos aprenderá a olhar as mulheres só de modo estético, ou talvez nem isso. Aprenderá, também, que as roupas são simbólicas, que um micro tapa sexo pode ser usado no Carnaval, mas não na praia, ainda que o biquíni seja menor que o tapa sexo. Elias olhava para a sociedade capaz de criar tais “relaxamentos comportamentais” não como sociedades aquém da civilização e, sim, como sendo as sociedades, no Ocidente, verdadeiramente civilizadas.

Ora, o “politicamente correto” é uma prática que não saber sobre quem deve lançar o “pito moral”. Dispara sua metralhadora giratória contra tudo e todos e, então, atinge aquelas pessoas que não estão transgredindo preceitos de civilidade porque não chegaram neles, mas exatamente aquelas que assim fazem porque estão usufruindo da alta civilidade e, então, praticando o “relaxamento moral” e comportamental de quem já educou maximamente seus instintos e impulsos. É claro que tais pessoas, então, passam a devolver para o “politicamente correto” o “pito”, e fazem assim por meio da ironia. Não raro, tais pessoas percebem rapidamente que o “politicamente correto” está sendo pouco culto ao não perceber essa situação toda. Os que recebem o “pito” o enxergam como censura, burrice e, assim, acabam por taxá-lo como ele de fato se apresenta: algo “brega”. Mas, ao fazerem isso, essas pessoas se esquecem que há uma camada da população que precisa passar pelo aviso do “politicamente correto”, porque estão aquém do capitalismo, do liberalismo e das mudanças de vocabulário necessários para se adaptar a um mundo menos duro.

Eis aí então a confusão montada: os mais civilizados e, enfim, com bom humor, querem brincar com a civilização, não lhes passa pela cabeça que haverá arranhões nela por conta disso. E de fato, segundo Elias, não haverá mesmo qualquer arranhão. Os conservadores acham boa a crítica desses, mas por motivos pouco nobres irão apoiá-los. E há também os intelectuais que não percebem esses gaps históricos entre os que falam a favor e contra o “politicamente correto”. Estes, por sua vez, acham que estão na vanguarda da vanguarda ao falar que o “politicamente correto” é “brega”. Estes, às vezes, se tornam os mais ridículos. Afinal, chamar alguém de “brega” já não virou algo fora de órbita? Intelectuais desse tipo não percebem, tanto quanto os que advogam o “politicamente correto” de modo tosco, que a dinâmica semântica de nossa sociedade é maior do que podemos acompanhar. São pessoas que não percebem, por exemplo, que o vocabulário gay mudou muito entre os tempos do filme Filadélfia e os tempos do filme Breakfast in Pluto. São aquelas pessoas que não viram que a palavra “preto” já aparece na boca de alguns militantes do movimento negro sem qualquer problema.

Filósofos como Rorty e eu mesmo, educados por Sócrates e Donald Davidson, nunca conseguiriam não achar tudo isso como o que é visto de um modo mais apetitoso se posto sob o crivo da dinâmica da conversação, da vida das palavras. Fica mais fácil para nós, davidsonianos, vermos que as palavras não estão gravadas nas estrelas. Elas não estão gravadas em lugar algum. O espaço lógico no qual eles funcionam não é fixo, mas se altera pela própria criação contínua de jogos de linguagem que vamos usando aqui e ali, e que vamos criando e recriando. Essa nossa concepção da linguagem nos dá condições de ver o politicamente correto no interior de uma contínua guerra semântica. Mas, para filósofos de outra formação, um tanto pré-quineanamente ou pré-II Wittgenstein, as palavras tem lá seus significados forjados como âncoras, tudo de modo arrumado, e o mundo não é dado pela linguagem, mas pelo que é não lingüístico.  Intelectuais assim, ao não lerem Elias, podem se engalfinhar numa luta séria contra o “politicamente correto” e adotarem um irritante atavismo. Podem bem não perceber que os humoristas que elas próprias estão querendo defender, ao falarem do “politicamente correto” como “censura”, não precisam deles como intelectuais.

Eu gostaria muito que os intelectuais que se acham a nova cocada preta da praça pensassem de modo histórico e vissem que a rebeldia deles contra o “politicamente correto” é algo já carcomido, algo que nos Estados Unidos pertenceu a uma série já velha, Seinfield. Às vezes penso que esses intelectuais adquiriram TV a cabo só recentemente. Ou então até tinham antes, mas não tinham familiaridade com o inglês. Pois eles estão lutando contra coisas que na origem já foram combatidas e, pior, estão lutando sem um mínimo de instrumental culto sobre tudo que vivemos nos últimos trinta ou quarenta anos.

© 2012 Paulo Ghiraldelli Jr. Filósofo, escritor e professor da UFRRJ.

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