Paisagem, vida e linguagem em Enéas Athanázio: uma leitura de O campo no coração (2)
Por Cunha e Silva Filho Em: 16/04/2012, às 15H22
Ressalte-se que, igualmente no derradeiro conto, avulta a força da história proveniente dos recursos do discurso narrativo, notadamente os de natureza léxica, ortoépica e prosódica.
A trama é simples. Um capaz é chamado pelo fazendeiro Elísio Leite Preto, alcunhado Nhôr Pré, a fim de cumprir uma missão sigilosa e arriscada - a de chegar até ao terreno de Jardelino Procópio, compadre de fazendeiro e lhe “levar” uma “reconvença”, ou seja, uma mensagem , uma espécie de plano de contra-ataque, naturalmente com recomendações para que o compadre não fosse vítima da surpresa de uma cilada arquitetada por inimigos e por motivos políticos.
Nhôr Pré, antes, numa viagem à cidade, havia colhido informações de que seu compadre estava em perigo de vida, sobretudo porque, segundo afirmação de Nhôr Pré, Jardelino era pessoa boa e sem maldade na cabeça. Note-se que, no discurso de Nhôr Pré, discurso conduzido pelo narrador-protagonista, Aristides, há um trecho que funciona como índice do que realmente ocorreria com o amigo e compadre: “Coisa de violência, incêndio, não sei bem, mas coisa séria, intriga de políticos.” (grifo meu, p. 7)
Entretanto, a grande sacada deste conto, segundo já mencionei, é a linguagem literária assumindo, em toda a extensão da trama, um lugar sobranceiro, decisivo no desenrolar da narrativa. A viagem de Aristides, do lugar de partido até as terras de Jardelino Procópio, ou Siô Jardo, reveste mesmo características de autêntico personagem no conto, porquanto é a partir do discurso do protagonista, dos obstáculos por ele encontrado durante o trajeto, junto de seu cão Jasper, seu fiel escudeiro, que todo o poder da narração toma vulto e cresce em importância do prisma artístico, seja na descrição da paisagem cambiante, mutável, orvalhada, ´áspera, ou suave, seja nas reflexões de Aristides, no seu solitário monólogo,
É aqui precisamente que o discurso do narrador-protagonista pôe em cena o seu fulgor, a sua variedade na descrição da flora, fauna, da terra, da mata, dos rios, dos campos. Esta maestria na descrição engolfa o leitor no espaço do enunciado, transfundindo tudo em visualização de cores, de formas, de tons com o objetivo de dar verossimilhança à narração e ao dinamismo dos passos do personagem em direção ao lugar de destino.
Tal descrição só se concretiza por força do domínio da linguagem, da combinação entre a mímesis prosódica e léxica dos regionalismos locais à exuberância, quase excessiva - poder-se-ia afirmar - desse componentes linguísticos inserido no discurso narrativo, a ponto mesmo de nos dar a sensação de um quase dialeto se consideramos o texto na sua inteireza. São inúmeros os vocábulos que assinalei durante a leitura, praticamente quase todos desconhecidos do meu repertório passivo da língua portuguesa. No corpo da narrativa constituem mesmo uma espécie de ruído na comunicação caso não esteja o leitor acompanhado de um bom dicionário de expressões regionalistas de Santa Catarina, ou mesmo de estados vizinhos do Sul do país. Não são somente substantivos, mas adjetivos e verbos.
Poderia aqui falar, no que tange ao uso da linguagem regional no conto, num avanço do autor em relação a escritores regionalistas do Sul, como Valdomiro Silveira (1873-1941)) e Simões Lopes Neto(1865-1916), este último, por sinal, citado em epígrafe (as epígrafes dizem muito das preferências de um autor) a uma das crônicas, “A degola,” ficcionistas que, no período Pré-Modernista, já incorporavam no discurso narrativo o uso dialetal das formas de linguagem. Ou seja, poder-se-ia falar com respeito a Enéas Athanázio, em ficcionista que, no conto em estudo, já liberta o texto sequestrado do texto sequestrador? ( Schüller, Donald. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989). Acredito que sim, pois Aristides, o narrador-protagonista, toma as rédeas da linguagem da sua condição cultural e daí eu haver acentuado que, neste primeiro conto do livro, a linguagem literária joga um papel privilegiado na urdidura do conto.
Do discurso do narrador é que extraímos a riqueza das imagens naturais de uma descrição resultante sem dúvida da íntima familiaridade do autor com o campo, o interior da sua região de origem e das raízes de sua alma nutrida memorialisticamente daquele substrato intacto, sedimentado na memória da infância e reabsorvido na vida adulta em forma de pintura da memória, tal como indica o próprio título do livro, retirado da última frase do derradeiro conto : “Tinha o campo no coração” (p.57).
Ensaísta que é, o autor sabe bem dosar o desenvolvimento de suas histórias, em geral curtas, com exceção do conto que estou comentando, que perfaz sete páginas, seguido do último, que só tem três, mas, por outro lado, pela brevidade dos textos, os demais não passam de uma página e meia, atingindo em apenas uma página, um mini-conto, portanto, de título “Despejo.” Desta forma, a sua arte de contar bem se enquadraria nos moldes da tão falada brevidade da short story.
Assim como em algumas crônicas do livro, que, mais adiante, comentarei, os contos guardam, via de regra, um insuspeitado desenlace. Apesar do índice apontado para uma possível tragédia no desfecho do conto em questão, à medida em que a história se vai aproximando do final, não deixa de surpreender o leitor, pelo clima de tristeza e esforço inútil despendido pelo narrador-protagonista, aquela cena fatídica do destino que teve o velho amigo e compadre de Nhôr Pré. Todo o clima do conto se resume na enunciação final: “Cheguei tarde demais.””(p.13)
O conto “O retorno” (p.55-57), conforme anteriormente referi, retoma a paisagem do campo, das coxilhas, do interior.Bem mais curto, a história repete o lugar já conhecido da fazenda “Primavera”. O tempo da narrativa adiantou-se. Aristides, o capataz, envelhecera um pouco e a narrativa ocorre no ponto em que um jovem membro da família de Nhôr Pré se em contra num trem em direção à sua terra natal.
O narrador, em terceira pessoa, descreve, pela perspectiva do jovem, a viagem de trem entrecortada de finas observações ao que se passava dentro e fora do trem: pessoas, paisagens, objetos, enfim, toda a movimentação e ao dinamismo de uma viagem dessa natureza.
Aguarda o jovem o velho e conhecido capataz, sempre disposto a servir aquela família de fazendeiros. Por três gerações assim havia feito. Chegando à Vila, o jovem, cujo nome não nos é revelado pelo narrador, logo tem um desejo: o de montar o seu cavalo preferido, de nome Luar de Prata. Em seguida, ele, Aristides e o fiel cão Jasper partiam a caminho da “Fazenda.”
O valor deste conto patenteia-se num sentido único: as recordações múltiplas de um personagem que, tendo se afastado dos campos, das coxilhas, enfim de todo o ambiente rústico-rural e ao mesmo tempo belo daquelas paisagens, ergue seu olhar para tudo o que vivera na infância, em todos os sentidos, no momento em que agora se encontra na fase da mocidade
Este é o sentido que prevalece como fulcro de interesse do conto e como a melhor forma de compreender o que realmente perdera, ou seja, sua verdadeira vocação de campeiro, que se agasalhava no mais recôndito do seu espírito. Este conto, como se vê, retoma um velho tema na literatura, a questão entre o campo e a cidade, tema que tem se manifestado tanto na ficção quanto na poesia, com são exemplos marcantes, para ficarmos na literatura portuguesa, Eça de Queirós (1845-1900) na ficção e Cesário Verde (1855-1886), na poesia.
O comportamento da linguagem, porém, neste derradeiro conto da coletânea, e em virtude da natureza do seu narrador e do ponto de vista do personagem-chave, não se apresenta, contudo, com a mesma intensidade e vigor da linguagem do conto inaugural. Não que a linguagem seja aqui menos literária, menos cuidada do prisma artístico. O contista se revela mais forte, mais vigoroso num universo que dele exija maior inventividade, ousadia, no vocabulário, na sintaxe, no discurso narrativo.
Pelo visto, a criação literária ganha maior desenvoltura sempre que o autor faz mobilizar todos os seus recursos expressivos e estilísticos combinando novas formas e técnicas no domínio da linguagem com o jogo de uma trama bem articulada ou até mesmo sem trama aparente (Continua)