Oton Lustosa: Bolsa de ferramentas (conto)

              Oton Lustosa    (*)                                                                 

            O meu pai ia sair do hospital no dia seguinte - foi a boa notícia que o Beto trouxe para nós naquela noite. Havia uma condição: “Ele vai precisar de uma cadeira de rodas” – disseram-lhe. De muito alegre que estava, minha mãe ficou triste, de repente. O Beto falou, sem pensar, que o meu pai estava fraco das pernas e abalado do juízo. Minha mãe ensaiou chorar... Ainda bem que ele se lembrou das palavras que ouviu da médica: “Debilitado e depressivo.”

            - Ela falou essas coisas – ele disse.

            Milton e Ditinho fizeram perguntas bobas e minha mãe teve de ralhar com eles:

            - Calem-se!

            Zé Neto deu um puxão no Milton, que quase o derrubou; e eu me abracei ao Ditinho, dizendo-lhe no ouvido que ficasse quieto.

            - Eu vi meu pai de longe – disse o Beto; - numa cadeira de rodas, empurrada por um enfermeiro; usava máscara e tomava soro. Eu até fiz um aceno, mas ele não viu - parece que naquela hora retiravam ele da sala da UTI e o levavam para a enfermaria.

            - Coitado do meu Zé... – lastimou-se minha mãe, com tristeza.

            - O que é “debilitado e depressivo”? – eu perguntei ao Beto.

            Zé Neto - que tinha treze anos e dizia que já era homem, que sabia muitas coisas que gente grande sabia – atreveu-se a dar uma opinião. O Beto olhou para mim, com doçura, referindo meu nome – Nandinha – e a sua voz foi mais forte que a voz do Zé Neto, que ora era grave, ora era aguda e fanhosa.

            - Nosso pai ficou mais de um mês sem andar, intubado, sem noção do mundo... “Depressivo” é isso, Nandinha;  – Sem noção do mundo, assim como um bobo; mas isso vai passar logo, ele vai andar, vai ficar bom.

            Quando meu pai estava no hospital, talvez eu tenha ficado depressiva (agora sei o que é isso: assim como uma boba), mas foi só por uns dias. Eu sonhei várias vezes com ele e em nenhuma dessas vezes ele estava triste. Uma noite, no sonho – coisa esquisita e muito legal –, vi meu pai todo vestido de branco, ele era um médico, eu até li no bolso do jaleco o seu nome - “Dr. José Silva Pereira”. Ele falou comigo e me chamou de filha, de Nandinha, e perguntou apenas pelo Zé Neto. No momento do sonho, eu fiquei muito alegre de ver o meu pai sendo um doutor – ele estava lindo, usava óculos e tinha o rosto lisinho, com a barba bem-feita. No outro dia, quando acordei, que lembrei do sonho todinho, fiquei encabulada e nem falei nada para a minha mãe. “Será por que ele só perguntou pelo Zé Neto?” – eu fiquei me perguntando por um bom tempo naquele dia.  

            Uma vez fui ao hospital com o Beto, na garupa da moto – eu queria ver meu pai, tinha sonhado com ele outra vez. No sonho ele fazia ginástica, uns exercícios que o Beto costuma fazer no fundo do quintal; estava como se fosse um rapaz – usava calção e camiseta; nem se parecia muito com aquele meu pai do tempo em que ele saiu doente para o hospital.

           Na portaria disseram que não era permitido visitas. Foi uma tarde horrível. O guarda reclamou do Beto - não fizesse perguntas, não insistisse, que poderia até chamar a polícia.

            - Não há visitas... paciente com COVID não recebe visitas! – assim falou o guarda; eu estava colada ao pé do Beto e ouvi aquele homem falar, com uma voz de impaciência e de má vontade. 

            O Beto se calou; também não arredou pé. Ficou ali no aguardo de pelo menos uma notícia de nosso pai – o guarda já havia dito que não tinha como dar notícias de pacientes internados. Havia ali muitas pessoas querendo saber sobre os seus parentes – se estavam intubados, se estavam mortos...

            Quando veio à portaria uma enfermeira, muitas pessoas lhe fizeram perguntas a um só tempo. Foi nesse momento que o Beto – que não é porque é meu irmão que digo, que é um moço bonito e sabe falar – teve a sorte de ser ouvido pela doutora.

            - Uma informação, doutora...

            - Quem é o seu parente que está internado? – perguntou a enfermeira.

            Ela era uma pessoa meiga, com uma voz doce; falou assim de um jeito com o Beto como se fosse uma madrinha, uma tia, uma mãe. Naquele momento o meu irmão ficou atarantado e antes que respondesse à doutora, pretendeu mostrar-lhe a cópia da identidade de meu pai. Entregou-me o capacete – eu já segurava o meu – e puxou a carteira para retirar a cópia da identidade. A doutora esperava pela resposta:

            - Quem?

            O Beto desistiu, não teve tempo de encontrar o documento e respondeu, com voz forte:

            - José Silva Pereira!... COVID!

            A doutora tencionou responder logo, mas para certificar-se da verdade – os meus olhos estavam fixos nos seus lábios –, resolveu consultar uns papéis que tinha na mão, numa pasta. Em seguida, respondeu... perguntando:

            - José Silva Pereira... 57 anos?

            Beto ficou em dúvida sobre a idade, olhou para mim – eu não sabia a idade de meu pai, sabia o dia do seu aniversário.

            - ... casado com Maria Anita da Silva? – reperguntou a doutora.

            Naquele instante extremo, em que me vi na iminência de ter uma notícia concreta de meu pai, não me contive. Levantei os braços e gritei: “É o meu pai!” Ouvi de uma senhorinha magra, que estava rente a mim, umas palavras de asco – “Menina chata!” -, mas eu nem liguei para aquilo. Eu estava alegre porque a doutora ia dar notícias do meu pai. Não sei por que eu imaginei naquele momento que ele era um rapaz forte e fazia exercícios físicos no corredor do hospital. 

            - É ele, sim, doutora! – respondeu o Beto.

            Eu notei que o semblante da enfermeira mudou. Ela olhou para mim - tinha piedade nos olhos, algum tremor na voz (eu notei!) e falou:

            - Ele piorou... foi intubado.

            O Beto ficou estático e a doutora não soube o que dizer por um instante. Depois ele disse “muito obrigado!”, mas acho que ela nem ouviu aquele agradecimento triste – dava informações a muitas outras pessoas.

Quando eu entreguei o capacete ao meu irmão para ele pilotar a moto e podermos voltar para casa, eu disse para ele:

            - Não chora não, Beto!... o nosso pai vai ficar bom.

            Naquela noite que antecedeu a volta do meu pai, não tive sonhos de verdade. Antes que fôssemos todos para a cama, o Beto, a minha mãe e até o Zé Neto conversaram muito sobre como iriam fazer para conseguir uma cadeira de rodas. O Beto disse que ia vender a moto dele, mas minha mãe não concordou; disse que ele era eletricista e precisava da moto para atender aos chamados dos seus clientes. Pensei em dizer à minha mãe que vendesse a máquina elétrica de costura, mas preferi ficar calada – o Beto ia encontrar uma solução. Se eu tivesse falado, o Zé Neto era bem capaz de ter me humilhado, me chamado de burra, pois naquele momento ele já tinha a ideia de como conseguir uma cadeira de rodas para nosso pai.

            - Aluga uma cadeira... é só por uns dias – ele falou.

            O Beto disse que sim! Por que não pensara isso antes?  Poderiam alugar uma cadeira de rodas - sairia mais barato que comprar uma nova.

            - Mas... e o dinheiro, meu filho? – perguntou minha mãe.

            O Beto disse que tinha algum dinheiro. Minha mãe quis entregar-lhe uma nota de cem reais, era o dinheiro que ainda restava - do Auxílio de Bolsonaro – para o preparo das refeições do meu pai quando voltasse do hospital. Beto não aceitou e falou para a minha mãe fechar a sua bolsa e guardar o dinheiro.

Acho que fiquei a noite inteira acordada e pensei milhões de coisas; eram assim uns sonhos de quem estava acordada. Vi meu pai em muitas situações esquisitas: ora zangado, ora alegre, ora triste... Chamava os seus filhos por nomes estranhos, numa língua que eu não entendia.

            Nossa mãe, naquela manhã, disse que só iríamos almoçar quando Beto chegasse com o nosso pai. Eu nem estava mesmo com fome, embora não houvesse lanchado – não havia lanche. Ditinho chorou – estava com fome –, mas minha mãe o acalentou, disse-lhe que logo o nosso pai chegaria com o Beto e iríamos almoçar com ele, todos juntos. Naquele dia o Beto não foi de moto ao hospital, um seu colega lhe ofertou carona.

            Já era mais de meio dia quando meu pai desceu da ambulância. Primeiro, o Beto pegou a cadeira de rodas, abriu ela assim esticando as suas peças e ainda passou a mão no assento para ficar bem limpo de alguma poeira – tolice, não havia poeira; depois, uns homens vestidos de branco – acho que dois, não me lembro se o motorista ajudou - retiraram meu pai de dentro da ambulância e o acomodaram na cadeira de rodas. Ele trajava uma bermuda azul e uma camiseta branca; estava muito magro e pálido, as mãos tremiam e a suas pernas ficaram muito finas.

            Minha mãe chorou de alegria... e de compaixão. Os meninos – Zé Neto, Milton e Ditinho – viram minha mãe chorar e choraram também; aproximaram-se e pediram a bênção, assoando-se. Eu fui a primeira a pedir a bênção ao meu pai. O Beto fez que ia empurrar a cadeira de rodas para dentro do quarto, mas meu pai, com a voz fraquinha e pausada, pediu para ficar na sala. Minha mãe falou que ia servir o almoço. “Almoçaremos todos juntos! Com as bênçãos de Deus!” – ela disse, levando as mãos ao alto. Naquele instante, meu pai puxou fundo a respiração – com esforço, eu notei – e perguntou, baixinho:

            - Vocês têm o que comer?

            O Beto apressou-se em responder; meu pai fez um aceno para que ele se calasse, por enquanto. Chamou Zé Neto para junto de si e falou manso, como quem rezava, passando-lhe a mão no peito:

            - Acho que não serei mais homem...

           Naquele instante chorou.

           – Pegue a minha bolsa de ferramentas, Zé Neto... e vá ajudar o seu irmão a sustentar a casa. 

            Beto nada falou, apenas deu um abraço apertado em Zé Neto. Nossa mãe serviu o almoço – frango ensopado para nosso pai; arroz com feijão para os demais.

 

             (*) Romancista/contista. Membro da APL.