Os mundos fantásticos de Miguel Carqueija

 

Prof. Msc. Edgar Indalecio Smaniotto - exclusivo para o Portal Entretextos
 
Escrever um posfácio não é tarefa fácil, já que, em geral ao chegar neste texto o leitor já leu a obra em si, tirando suas próprias conclusões, assimilando a obra de diferentes formas. Afinal não existe leitura passiva, todo o conteúdo lido sempre é uma das interpretações possíveis da obra de um autor, através do filtro cultural de um leitor.  
 
 
Este texto, neste caso, apresenta um dos tantos possíveis olhares sobre “A Batalha do Poder”, e a obra literária de Miguel Carqueija. Não é um olhar mais perto de alguma pretensa VERDADE, mas uma das verdades possíveis. Se não for a sua, tudo bem!!! 
 
 
“A Batalha do Poder”, que você leitor acompanhou nos últimos meses neste Portal Entretextos, em um tipo de folhetim moderno, é mais uma contribuição do já conhecido e sempre atuante escritor Miguel Carqueija ao gênero fantástico no Brasil. Se é a primeira vez que leu uma das novelas de Carqueija pode ter notado como sua escrita é ágil, recheada de elementos aventurescos, ao estilo dos antigos pulps e da literatura infanto-juvenil. 
 
 
O estilo carqueijeano é marcado pelo uso de diálogos, com pequenas inserções narrativas, pedindo uma leitura mais física por parte do leitor. Não que o autor não ofereça elementos para uma leitura crítica, estes estão lá, como exploraremos a seguir. 
 
 
As histórias de Carqueija estão sempre com um pé na dicotomia. São histórias divididas, tendo um pé na fantasia e outro na realidade. Carqueija nos leva a mundos imponderáveis, em que forças místicas operam na vida do mais comum dos mortais, onde qualquer um pode ser chamado a cumprir uma missão de cunho cósmico, a empreender uma jornada em que o destino do mundo pesará sobre ele (ou no caso de Carqueija ela). 
 
 
Entretanto estes mundos fantásticos não deixam de serem simulacros de nosso próprio mundo, em que Carqueija convida o leitor a refletir criticamente sobre as relações sociais e afetivas de nosso tempo. Esta dicotomia temática esta impregnada na estilística do autor, que hora trabalha com uma linguagem extremamente coloquial, usando e abusando de diálogos, enxertados com momentos narrativos de linguagem mais simbólica, aberta a múltiplas interpretações. 
 
 
Neste “A Batalha do Poder” Miguel Carqueija fez uso da moderna mitologia dos super-heróis americanos e seus aparatos de luta tecnológicos, ao mesmo tempo em que lembra justiceiros memoráveis a lá Robin Hood, com sua personagem Faisão Verde. O ridículo envolto em se lutar fantasiado de animal (seja uma aranha, um morcego, ou um faisão), e motivo de brincadeira metalinguística na própria obra.  
 
 
Das obras de Carqueija esta talvez seja a mais política, aqui temos uma nação fantástica, mas poderia ser o Brasil da época do regime militar, ou a Líbia de Kadaffi, a Coréia do Norte, ou outra nação sob julgo ditatorial. O autor procura deixar claro seu compromisso com a democracia, e o ponto mais alto disso é quando a Faisão Verde decide, após a queda da ditadura, abandonar sua identidade de heroína. Em uma situação de repressão a luta clandestina, sob máscaras, é inevitável, em uma democracia ela não pode existir, ou feriria os princípios básicos da democracia, entre os quais a necessidade de fortalecimento de instituições e não de pessoas. Uma democracia que precisa de heróis é um simulacro de democracia. Assim o fim da personagem não poderia ter sido mais apropriado.
 
 
Carqueija insiste na não separação entre religião e ciência, ao fazer esta separação o regime político de Lemuel, apresentado no livro, cria uma ciência maligna, que desrespeita a natureza. A escolha de uma “maquina de controle climática” como arma definitiva por parte de Carqueija não parece ser fortuita, mas um lembrete de que existem limites éticos para a intervenção técnica sobre a natureza. 
A tecnologia energética usada pelo “Faisão Verde” ao contrário funciona em harmonia com as forças naturais, e não as controlando. Mas, no limite, é o propósito ético do portador da tecnologia que define seus desígnios.  
 
 
“A Batalha do Poder” pode ser lida assim como uma novela sobre democracia e os usos indevidos da técnica, mas Carqueija não deixa de tratar outros temas recorrentes em sua obra.  Está lá à jovem heroína, sempre uma mulher, por um lado forte e independente, mas ao mesmo tempo vindo a se realizar como mulher apenas no casamento tradicional. Uma contradição enfrentada por um autor que busca um meio termo entre a valorização de personagens femininas fortes e independentes, mas que valoriza o casamento e o papel da mulher como centro do universo familiar (a mãe). Ser mãe, mulher e profissional, este é o dilema enfrentado pela mulher, para Carqueija um equilíbrio é possível. 
Outro tema presente, e recorrente, na obra de Carqueija é o papel da Igreja Católica, que é apresentada como uma instituição perseguida por iconoclastas. Não concordo com esta visão do autor, admiro algumas correntes do catolicismo, como os Franciscanos, os Padres do Deserto, a Teologia da Libertação e atualmente as propostas da Meditação Cristã, mas é difícil separar isso da estrutura monolítica e controladora da Igreja, a lá Republica de Platão. 
 
 
O papel social da mulher, crítica a ditadura, misticismo e ciência, a primeira vista poderia ser uma mistura indigesta, mas aqui temos tudo isto em uma narrativa ágil, cheia de reviravoltas, típica da literatura infanto-juvenil. Leio muita literatura infanto-juvenil, até porque, como professor, realizo a leitura diária de um capítulo de livro, ou um conto para meus alunos, e vejo potencial para a obra de Carqueija neste mercado.  
 
 
Conheci Miguel Carqueija inicialmente através de diversos minicontos, de temas fantásticos variados, que o autor escrevias para fanzines como o Somnium, o Notícias do fim do nada, Hiperespaço, Megalon e Scarium. Miguel sempre foi um autor presente nestes veículos, certamente deve ter tido centenas de contos publicados em fanzines. Este material precisa ser reunido em livro, ou pode cair no esquecimento. 
 
 
Logo adquiri os livros do autor publicados na coleção Hiperespaço, simpáticos livros de bolso editados por César Silva. “A âncora dos argonautas”  apresentava elementos que, mais tarde descobriria, serem recorrentes na obra de Carqueija: heroínas femininas adolescentes, influências do universo mítico criado por H. P. Lovecfatf, poderes paranormais (como dádivas de Deus), e a presença de uma visão de mundo católica.  
 
 
Ao terminar a leitura desta noveleta de Carqueija já sabia que acompanharia, com interesse, outros escritos seus. Logo foi publicado pela Nova Coleção Fantástica “A Esfinge Negra”  primeiro livro que resenhei de Carqueija, para a revista macroCOSMO.com nº 21 de Agosto de 2005 (p. 76-77), esta é uma novela Space Opera (ou uma história de aventura espacial), a trama se desenrola tendo como principal componente à vingança pessoal  de uma mulher que se intitula “A Esfinge Negra”, contra um criminoso que se torna um político de grande poder. 
 
 
Estão lá descrições de armadas espaciais com 40 encouraçados, 13 belonaves e exércitos gigantescos de 2.700.000 homens, além de especulações sobre possíveis dimensões e universos paralelos.  Num universo bastante povoado, com milhares de planetas habitados e colonizados.
Seus outros livros, “As Luzes de Alice” (resenhado por nós em uma edição especial da Magazine Lovecraft) e a continuação “Os Mistérios do Mundo Negro”  trazem uma jovem paranormal católica enfrentando antigos deuses malignos lovecraftianos. O embate entre forças malignas e benignas é o elemento central da narrativa carqueijiana, em seus livros bem é mal são branco e preto, não existem tons de cinza. 
 
 
Já “O Fantasma do Apito”  e “Farei meu destino”  , esta última também resenha por nós na revista Scarium Magazine nº. 25, são textos que mantém a luta entre forças cósmicas distintas, mas que ao mesmo tempo centram-se na valorização da amizade e da busca coletiva de objetivos. Valores que nossa sociedade individualista tenta resgatar, seja em casa ou na escola. 
 
 
Tendo escrito tantos textos apropriados ao publico juvenil (e adulto claro), é um mistério porque nenhuma editora de livros paradidáticos descobriu Carqueija. Seria por que ele vive a se esconder sobre o disfarce de um típico bancário, lugar onde você nunca espera encontrar imaginação tão prodigiosa? Talvez!!! Ou, quem sabe, faltam editores que apostem em “novos escritores”, mesmo quando estes já estão ai há muito tempo. Bom, é isso, espero que como eu, você leitor, tenha gostado deste livro, mesmo que não pelos mesmos motivos. Até porque isso pouco importa, afinal cada livro fala diferente a cada leitor, e por isso a literatura é tão fantástica, mesmo quando é mainstream. Pelo menos para quem acredita nestas divisões ideológicas. 
 
 
 
Edgar Indalécio Smaniotto é filósofo, mestre e doutorando em Ciências Sociais,  pesquisa história da ciência, literatura fantástica e história em quadrinhos. Tem livros e ensaios críticos publicados em coletâneas. 
Edições Hiperespaço [Coleção Fantástica], julho de 1999. 
Edições Hiperespaço [Nova Coleção Fantástica], janeiro de 2003.
Ambos pelas Edições Hiperespaço, respectivamente 2004 e 2011. 
Coleção Scarium Fantástica, Rio de Janeiro, 2007. 
Giz Editorial, São Paulo, 2008.