Se analiso e repenso os textos - poéticos ou ficcionais - dos escritores brasileiros do século XX, se vejo-me em face ao momento criador ímpar de nossos líricos (aqueles que surgiram aqui no Brasil depois dos anos 40), na tentativa de compreendê-los além das análises tradicionais e das interpretações corriqueiras, não posso deixar de orientar-me pelos sábios ensinamentos filosóficos de Gaston Bachelard.

Sobre a minha ligação teórico-crítica com a filosofia de Bachelard, devo dizer que a mesma vem dos anos noventa, quando ainda repleta de mineiridade serrana resolvi alcançar outros cogitos, na tentativa de decifrar os pergaminhos ficcionais do mineiro João Guimarães Rosa. Desde então, Bachelard tornou-se teoricamente necessário em meus estudos e propostas de escrever sobre os textos dos escritores e poetas brasileiros. Depois das análises (extremamente racionais) e das interpretações submetidas a ponto de vista da hermenêutica, criei elos afetivos com as produções literárias de diversos ficcionistas e poetas da segunda metade do século XX, textos literários esses que redirecionaram a minha perspectiva crítica como professora de Literatura Brasileira e Portuguesa. Em se tratando de ficção-arte, depois de Guimarães Rosa, as narrativas dos mineiros Lúcio Cardoso, Murilo Rubião, Roberto Drummond, e outros, marcaram-me profundamente. Ao lê-los, submetida à técnica da Crítica Literária, sempre surgia espontaneamente aquela cumplicidade afetiva que existe entre falantes de um mesmo linguajar nativo. Além das análises, dialoguei com os textos desses escritores, como se os mesmos tivessem permitido-me uma interação afetiva com seus incomuns universos ficcionais. Quanto aos poetas, não posso deixar de realçar o meu amor incondicional pelos versos de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Gilberto Mendonça Teles, porque esses transportaram para o papel, liricamente, a fragmentação existencial de seus contemporâneos e, ao mesmo tempo, suas próprias dilacerações interiorizadas.

Se analiso e, posteriormente, repenso filosoficamente os criativos textos desses escritores, terei de nomear aqui a influência de Bachelard sobre minhas argumentações. O filósofo francês do século XX passou a fazer parte da minha lista de paixões transcendentais. Bachelard influenciou-me em meu exercício da crítica literária, e exercerá esta influência enquanto houver páginas ficcionais ou poéticas que se adeqüem aos seus postulados filosóficos. Ele soube desvendar as camadas impessoais do ser humano, camadas internas, descobrindo ali as zonas do repouso ativado que propiciam a privilegiados escritores e poetas, participantes de um período agitado da História do Homem, a formalização de páginas ficcionais ímpares e da criação de versos singulares, diferentes das anteriores formalizações (Arcadismo, Romantismo, Parnasianismo) de alguns solitários que se compraziam em conviver com a criatividade poética, fechados em seus universos particulares e em suas torres de marfim.

Ao expor aqui o meu entendimento sobre assunto tão polêmico, não é minha intenção desmerecer esses períodos literários, anteriores ao século XX. Os grandes poetas que deixaram suas marcas na História da Humanidade jamais serão esquecidos. Não há como desmerecê-los, uma vez que souberam sentimentalizar suas realidades com inigualáveis poderes de criatividade lírica. Esses poetas incomuns conseguiram ultrapassar as barreiras geográficas e temporais de seus limites históricos. Esses líricos incomuns, cada qual inserido nos padrões estéticos de seus momentos existenciais, ainda são e continuarão reverenciados - Sapho de Metilene, Alceu de Metilene (Grécia Antiga), Dom Diniz (Idade Média), Petrarca (Renascimento Italiano), Camões (Classicismo Português), Calderón de La Barca (Barroco Espanhol), Thomaz Antônio Gonzaga (Arcadismo Brasileiro-Colonial), Bocage (Arcadismo Português), os nossos poetas românticos (sentimentalizando subjetivamente a realidade à moda romântica), os nossos líricos parnasianos (os quais souberam também sentimentalizar objetivamente a realidade), e, por fim, os poetas simbolistas do Brasil (Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimarães, incomparáveis e pouco conhecidos) -, poetas esses que intuíram a possibilidade de transitarem em outros planos superiores, além da realidade vital (replena de “exigências externas e sociais”), por intermédio de uma insólita musicalidade provinda da camada amorfa, aquela camada que somente uns poucos eleitos conseguem detectar. Mas, é preciso que se diga, esses grandes poetas (incluindo também os que não foram mencionados, oriundos de várias partes do mundo e momentos estéticos diversificados) foram abençoados, receberam um sinal que os marcaram e os individualizaram ao longo da História da Humanidade. Foram realmente excêntricos criadores de poesia, mas mesmo alojados em suas excentricidades estavam presos a modelos poéticos pré-estabelecidos; no entanto, mesmo assim, souberam colocar em seus versos aquele algo mais que transforma o texto poético em Arte.

Então, o que dizer dos poetas do século XX? Como modelar tecnicamente palavras que os enalteçam e os diferenciem? O que dizer daqueles poetas que enfrentaram a ruptura com a telúrica sentimentalização anterior? Porque todos eles (os anteriores) sentimentalizaram a realidade. Então, nos anos iniciais do século XX, foi necessário que alguém se rebelasse, mostrando a impossibilidade de se aprisionar a poesia em formas estéticas preestabelecidas. A sentimentalização, diga-se de passagem, não é privilégio do poeta romântico, é fenômeno estilístico do Gênero Lírico; a musicalidade, por sua vez, não é privilégio do poeta simbolista, é fenômeno também do Gênero Lírico, desde os gregos antigos, etc., etc., etc., e o poeta realista e/ou parnasiano do final do século XIX será “para sempre” um poeta lírico, queiramos ou não, portanto, seus poemas “objetivos” pertencerão “para sempre” ao Gênero Lírico.

Os poetas do século XX, fragmentados, machucados, conseguiram recuperar-se da cisão com as anteriores formas líricas institucionalizadas (colocaram-se como poetas de um novo tempo, participantes ativos de uma época de transtornos existenciais), e renovaram a forma da criação poética, sem, no entanto, renunciarem ao reconhecimento da pura Poesia, aquela “melodia inaudível” (Gilberto Mendonça) que vigora no espaço do não-dito. Antes da sentimentalização - fenômeno estilístico do Gênero Lírico -, os poetas do século XX ocuparam-se com o entendimento de sua própria realidade. Para que esse entendimento pudesse, posteriormente, acontecer liricamente, valeram-se do repouso ativado de suas consciências dinamizadas, interiorizaram-se, alcançaram o tempo do pensamento, questionaram suas próprias posturas existenciais, e só depois revelaram a uns poucos leitores a revolução lírica que os dominava.

Assim, nestas linhas, repensando a poesia e os poetas do século XX, deparo-me com o livro de Edison Moreira, Tempo de Poesia, que me foi gentilmente presenteado por seu irmão Pedro Paulo Moreira. Pois foi com imensa satisfação que li os poemas de Edison Moreira, meu conterrâneo; autêntico prazer provindo do Conhecimento Teórico-Crítico, do reconhecimento da criatividade poética de um homem que nasceu em Minas Gerais, mas que, para o meu orgulho de mineira, residiu em uma pequena e mágica cidade - Carangola -, a minha cidade de nascimento. Não sei se o Edison nasceu nesta pequena cidade, lugar de minhas origens (este poeta que me encanta liricamente). Se o Edison for oriundo de outra localidade adjacente, não deixará de ser reverenciado por mim, porque sua poesia interpreta a realidade que o envolveu e, que, de certa forma, envolveu também os anos primaveris que ali vivi.

Reafirmando minhas induções anteriores, li e encantei-me com os versos de Edison. Quero esclarecer que não foram as palavras elogiosas de Jorge Amado, de Carlos Drummond de Andrade, de Emílio Moura, Aderbal Jurema, Celso Brant, e outros portentosos da literatura (impressas no livro de Edison), que me fizeram apreciar os belos poemas de meu conterrâneo; o que me encantou foi encontrar-me em face de um poeta lírico singular que soube realçar poeticamente os instantes metafísicos que o envolveram - instantes repletos de criatividade. Edison Moreira soube eternizar o seu Tempo de Poesia; soube registrar nas formas líricas de seu momento histórico - formas descompromissadas, distanciadas dos padrões pré-estabelecidos, formas recomeçadas - seus instantes de autêntica inspiração, instantes “suspensos entre o antes e o depois” da realidade vital.

Este poeta mineiro - até há pouco tempo, desconhecido para mim - não deixou que a poesia se aprisionasse em uma determinada forma; valeu-se de todas: fez versos rimados, versos sem rimas, sonetos, romanceiros, poemas existenciais, porque o seu Tempo de Poesia (título que reúne toda a sua obra poética) mostrou-se amplo, um invólucro de “acontecimentos excepcionais”. Ele quis que a sua criatividade poética saísse do mais profundo de seu ser, e que durasse, ou seja, ultrapassasse as barreiras de seu próprio tempo/espaço histórico. E ele conseguiu.

Para explicar esta duração, que se fez/faz presente nos versos de Edison, recorro aos ensinamentos de Bachelard:
Para durarmos, é preciso então que confiemos em ritmos, ou seja, em sistemas de instantes. Os acontecimentos excepcionais devem encontrar ressonâncias em nós para marcar-nos profundamente. Desta frase banal – “a vida é harmonia” –, ousamos então finalmente fazer uma verdade. Sem harmonia, sem dialética regulada, sem ritmo, nenhuma vida, nenhum pensamento pode ser estável e seguro: o repouso é uma vibração feliz.*
Edison confiou em ritmos, em sistemas de instantes. Mesmo abandonando antigas exigências formais, mesmo rejeitando por vezes a tradicional contagem de sílabas, “assombrou” aos que já não acreditavam que a Poesia ainda pudesse se fazer atuante em pleno século XX, século das “coisas aparentes”. No VIII SONETO (p. 30 de seu livro)*, a “sempre esperada” é anunciada, “assombrando” os presentes, “trazendo riquíssimas sementes, para a fecundação da madrugada”. O poeta suspende o dito “véu das coisas aparentes”, mas a esperada “permanece ainda irrevelada, vestida de prodígios e montada em cavalos de crinas fluorescentes”. O Poeta do século XX continua repensando liricamente o seu próprio recolhimento:

Ó pastora de origens. Como um fruto
germinaste no meu recolhimento.
Se em meu espanto tua avena escuto

dentro da eterna noite criadora,
– por que esta inquietação, este tormento
e esta procura desesperadora?

Em seu recolhimento, ou “repouso ativado” (como diria Bachelard), a poesia germina, e o poeta escuta, espantado, a música dessa germinação “dentro da noite criadora”. O espanto é concebível, porque a inquietação, o tormento, a procura desesperadora são provenientes do já comentado “repouso eletrizado”, bem diferente daquele repouso como sinônimo de descanso, de afastamento dos problemas cotidianos. Cada poema de Edison foram recolhidos desses instantes de pura reflexão, instantes que o marcaram em profundidade. Se alguns poemas revelam momentos doloridos, como por exemplo os versos feitos em homenagem à irmã Ana Maria, evidenciando dor e saudade, conotam também a certeza de que, em sua duração terrena, ela conheceu momentos de extrema felicidade, recebendo o amor de seus familiares. Por intermédio do “repouso ativado”, o irmão soube registrar, através de uma inegável sensibilidade, os instantes de carinhosa convivência familiar que pontuaram suas existências.

Bachelard diz em seu livro A Dialética da Duração que os fenômenos da duração (tempo) devem ser construídos com ritmo (sistema de instantes). Edison Moreira construiu o seu Tempo de Poesia com ritmo, com instantes liricamente superpostos. Vejamos alguns versos que revelam esses momentos suspensos entre o antes e o depois do tempo vital.

Sobre a Poesia:

Em ti, levado por terríveis numes,
numa incursão de angústia me sepulto,
mas volto sob a luz dos mesmos lumes

que em Babilônia, numa noite fria,
iluminaram meu passeio oculto
pelos jardins suspensos da poesia. (p. 26)

Instantes: “onde presença e ausência se eqüivalem” (p. 27). Instantes registrados a partir de um “tumulto inicial de luzes virgens, / no mapa imemorial do imponderável”.

Os poemas do livro Promontório de Deus, parte da Coletânea já assinalada (os Sonetos a Nossa Senhora, A Canção do Mensageiro, os Salmos, e outros), mostram momentos de iluminação espiritual. Nesses instantes metafísicos, o poeta Edison abeira-se do que Bachelard chama de Tempo Espiritual. O Tempo Espiritual, segundo Bachelard, está fora do Tempo Vital (do Relógio) e do Tempo do Pensamento (os cogitos superpostos), mas poderá ser apreendido através dos clarões do espírito. Ainda, segundo Bachelard, só os Poetas e os Visionários vislumbram esses clarões.

Busquemos outros exemplos que revelam tais instantes nos Sonetos de Amor (I SONETO, p. 49):

Chega-me, às vezes, o pressentimento
de que em função de algum encontro existo,
e é para mim o encontro já previsto,
mais que encontro: um pressentimento.

Do promontório de mim mesmo assisto,
na madrugada de outro nascimento,
aproximar-se alguém que reconquisto
pelo infinito mar do esquecimento.

Eu venho pressentindo de era em era
que esse alguém que me busca e em cuja espera
a vida de meu ser se concentrou,

Será na doce condição de esposa,
o retorno feliz de alguma cousa
que em milênios de mim se separou.

Eis o momento do encontro com a poesia, tantas vezes realçado, mas, de cada vez, transfigurador de formas singulares, únicas, diferentes. O Poeta Edison já alcançou os planos superiores do pensamento puro, porque se não fosse assim, ele não transmitiria a ouvidos e olhos atentos estes versos reveladores: “Do promontório de mim mesmo assisto, / (...) / aproximar-se alguém que reconquisto / pelo infinito mar do esquecimento”. Ele tem plena consciência de seu poder. Ele sabe que reconquistou o direito de posse da Poesia, aquela que vigora “no infinito mar do esquecimento”. Os insensíveis que se exaltam por serem autenticamente racionais, aqueles que estão submetidos aos grilhões das exigências cotidianas (exigências horizontais), jamais alcançarão o Promontório do Poeta. Do alto de seu Promontório, ele pode visualizar o Imponderável (o Mundo do Silêncio, o Mundo Amorfo, seja lá a denominação científica que queiramos dar a tal lugar), mundo apenas acessível aos sinalizados por nascimento. O Poeta Edison pressente o encontro tão importante, porque a “esposa esperada” será sempre incorpórea. Ela só será aparentemente formalizada por líricos incomuns, e terá de ser eternamente redescoberta (“Suspenso o véu das coisas aparentes, / permaneces ainda irrevelada”, p. 30). A poesia é um mistério a ser revelado, “é uma viagem sem roteiros no impossível” (p. 31).

Há inúmeros instantes de pura poesia nos versos de Edison Moreira. Poderia mesmo afirmar que todos os poemas do livro são preciosos. Por intermédio deles, eu poderia ficar aqui, envolta em meu próprio repouso dinamizado, reguardecendo-me com o lirismo singular que evola de suas entrelinhas, e percorrendo intermitentemente, junto com ele (o Edison Moreira a me guiar), os caminhos líricos de seu Tempo de Poesia. Entretanto, pude também perceber a necessidade do auxílio de Gaston Bachelard nesta minha empreitada (auxílio interdisciplinar). Com o filósofo francês, através de seus pensamentos, que me ajudaram a vislumbrar o particular Promontório do Poeta, eu pude entender o mágico Destino de Edison, o privilegiado irmão de Pedro Paulo Moreira.

Para confirmar os instantes dinamizados de Edison Moreira, fecho os meus argumentos teóricos com os versos de um poema dele mesmo (POEMA, p. 145); finalizo estas linhas com a força poética de meu conterrâneo, um mineiro de Antigas Eras, meu amigo sobrenatural, sim, já que presenciamos, ambos, as marcas de um mesmo tempo admirável (Carangola, as estrelas, as árvores), sem ao menos nos encontrar, naquelas esquinas insólitas, nas íngremes ruas, para uma mineiríssima conversa reabastecida com café-com-leite mineiro e sonhos de primavera.

Dor de saber que o espanto com que fito
as estrelas, as árvores e o mar,
há de deixar-me dentro de momentos.

Não ser eterno o instante em que eu teria
forças para romper o compromisso
que entre mim e o efêmero se fez.

Permanência do dia em que deixasse
em cada gesto aberto em meu delírio
a marca absoluta do meu ser.

Não poderei, Senhor, reter o tempo
a plenitude que de mim faria
um caminheiro alegre como pássaros.

* Cf.: BACHELARD, Gaston. A Dialética da Duração. São Paulo: Ática, 1988, p. 9.
* MOREIRA, Edison. Tempo de Poesia. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Garnier, 1999.