Un souvenir hereuse est peut-être sur terre
Plus vrai que le bonheur.
A. de Musset*





                  Toda criança, em certos momentos da sua fase infantil, tem alguma fixação por um aspecto da vida, como, por exemplo, o interesse manifestado pelas artes que, no meu caso particular, era o desenho a lápis que minha mãe, Ivone, esboçava com desenvoltura e talento. Era dotada da habilidade com as mãos, tanto assim que aprendeu a fazer trabalhos magníficos de tricô: toalhas, passarelas, colchas, guardanapos etc. 
                  Mamãe, que eu saiba, não os comercializava. Preparava-os para uso próprio ou como presente para alguém da família.
Porém, dessa vocação para o trabalho artístico, o que mais me deslumbrava como criança eram seus desenhos que, de quando em vez, traçava com a suavidade de suas santas mãos. Desses desenhos o que mais me maravilhava eram aqueles figurando carneirinhos. De outros desenhos não me recordo. Os carneirinhos, todavia, eram uma outra estória. Um deslumbramento mesmo.
                 Belos, belíssimos carneirinhos construídos apenas com lápis preto e uma simples folha branca de papel.
- Mamãe, me faz um carneirinho. Lá se ia ela pegar de um lápis e uma folha de papel. Às vezes, um pedacinho de papel. Não demorava muito e, dali a instantes, eu a via sentada à mesa da sala movimentando suavemente a mão direita com o lápis miraculosamente seguindo uns poucos comandos que sua cabeça de artista ia indicando e transformando num bem acabado desenho representativo da figura do animalzinho da minha predileção infantil.

              Um dia lá em casa, na rua do Domício, ganhamos de presente um carneirinho de verdade, oferta de um fazendeiro de Palmeirais, Piauí, marido de uma prima. O carneirinho virou o mimo da casa, mas não demorou muito lá. Não sei ao certo se o destino dele foi se transformar em comida para a família e parentes próximos, ou se foi devolvido ao dono por falta de quem dele pudesse tomar conta direito.
            -- Aqui está, Chico, seu carneirinho – dizia mamãe, entregando-me a folha.
            -- Está lindo, mãe! – completava eu me dirigindo a um dos quartos de nossa casa. Lá dentro, era que minha alegria crescia e não tinha tamanho. Olhava, olhava, embevecido, para aquele carneirinho que me parecia vivo e me fitava os olhinhos interrogativamente, como se quisesse falar comigo. Só mamãe sabia fazer-me aquele desenho, daquela forma, daquele tamanho, daquela perspectiva. Carneirinho especial vindo das mãos inspiradas e ágeis quando se destinavam a criar desenhos da sua imaginação materna diante de um pedido de uma criança inocente. Carneirinho delineado com delicadeza do traço e amor de mãe. Aquilo tudo me enchia de felicidade.
            O carneirinho, comigo, passava da figura à imaginação que não parava de inventar mil e uma aventuras que, juntos, vivenciávamos. Na rede, ou mesmo na cama de mamãe, eu me perdia e ao mesmo tempo me encontrava no universo mágico da fantasia.   Havia, então,  transposto aquele espelho de  Lewis Carroll (1832-1898) de que uma vez  falara J.J. Veiga (1915-1999) em conferência, criando e criando situações insólitas em enredos que me levavam a um mundo sem tempo e sem espaço no futuro.
           Os carneirinhos de mamãe valiam mais do que os presentes de Natal, porque com eles eu me transportava para o tempo e o espaço do imaginário.
Mamãe nunca me perguntou na época por que prezava eu tanto aqueles carneirinhos de papel.     Ela mal sabia que eles funcionariam esteticamente como metáfora da infância, fase na qual evidentemente a figura do carneirinho era uma forma mais livre e natural, de me relacionar com ela, que era pessoa não muito inclinada, por temperamento, a arroubos sentimentais. 
         Creio que das lembranças mais enraizadas da minha memória afetiva, no que tange ao meu relacionamento com mamãe,seja aquela imagem pictórica delicada, perfeita, sem jaça, que conservo indelevelmente no meu universo de adulto. A minha aproximação afetivo-emocional com mamãe se deu primeiro pelo caminho que, entre nós, se abriu pelas asas da Arte através dos carneirinhos de papel. 
       Não sei hoje onde foram parar meus carneirinhos de papel, visto que não foi um, ou dois, ou três que pedi a mamãe. Pedi-lhe vários e ela nunca se cansara de me desenhar, com mão de fada, aqueles animaizinhos. Com o tempo e os anos,  se me  tornaram  eles cada vez mais necessários ao repertório de afetividades. Eles me hão de acompanhar pelos tempos afora e me darão sempre a certeza de que - como acontece com  tantas pessoasse -,  se eu tenho uma grande admiração pelas artes,  o desenho, a pintura, a escultura etc., etc. , é porque foi lá na Teresina da minha infância que despertei para sempre para o encantamento das formas artísticas, da mesma forma que, no início da adolescência, por via paterna, recebi o saudável influxo do exercício admirável da escrita literária. 
         As imagens recorrentes que me vêm , fortes e nítidas, daqueles desenhos de mamãe talvez representem, agora, o que de mais feminino, mais delicado, puro e maternal, guardei comigo da personalidade dela. Naqueles carneirinhos de papel estão embutidas a minha admiração por ela e a minha forma meio gauche de a ter amado e de conservar esse sentimento no lugar mais profundo e transcendente do meu ser. Benditos carneirinhos de papel de minha mãe Ivone!

Nota: A epígrafe de A. Musset acima fçoi extraída do poema “O poeta” de Álvares de Azevedo. Apud Álvaro de Azevedo, poesia. Coleção Nossos Clássicos. Apresentação de Maria José Trindade de Negrão. 3 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1969, p. 29-30.