[Bráulio Tavares]

A gente fala de vez em quando sobre “como começar um conto” (ou um romance), sempre de acordo com aquela idéia de que é preciso fisgar o leitor desde o início, impedir que ele pule adiante e vá ler outra coisa.  É um conselho que se encontra em muitos manuais respeitáveis de escrita, com exemplos ilustres que volta e meia estou citando aqui; mas para mim é um típico recurso da pulp fiction, da ficção popular voltada para fatos insólitos e adrenalina turbinada. H. P. Lovecraft, o criador dos Mitos de Cthulhu, tem alguns exemplos bem típicos, recordados neste pequeno apanhado de D. T. Wynne (http://bit.ly/LIH3yY) sobre algumas aberturas famosas dos seus contos.


Lovecraft começa “O Horror de Dunwich” (1929) dizendo: “Quando um viajante que cruza a parte central de Massachusetts toma o caminho errado na encruzilhada da estrada de Aylesbury, pouco depois de Dean’s Corners, ele penetra numa região deserta e intrigante.”  O conceito essencial da história é que o viajante mergulha no desconhecido sem o perceber, meramente por ter escolhido o lado errado numa bifurcação.  A obscuridade do destino é ressaltada pela precisão geográfica das coordenadas. Tudo é conhecido mapeado, tudo está sob controle, mas... se o cara pegar o desvio errado...

 

O começo de “The Descendant” (1938) é um dos mais impactantes que conheço: “Em Londres existe um homem que grita todas as vezes em que tocam os sinos das catedrais”.  Mais uma vez o horror e o estranho vêm grudados como sanguessugas a um conceito relativo à ordem (os sinos das igrejas funcionam como relógio, como veículo de mensagens, etc.), trazendo ainda por cima a conotação religiosa.


Um dos seus contos mais famosos, “O Chamado de Cthulhu” (1928) começa com uma de suas frases clássicas de desdém pela Razão: “A coisa mais misericordiosa do mundo, creio eu, é o fato de a mente humana ser incapaz de correlacionar tudo quanto ela contém.”  Para Lovecraft, vivemos num mundo absurdo e maligno, mas felizmente não o percebemos – porque só temos olhos para os fatozinhos banais da nossa vida diária.


Um dos meus favoritos é o começo de “O Inominável” (1939), onde o narrador diz: “Estávamos sentados sobre um arruinado túmulo do século 17, ao fim da tarde de um dia de outono no velho cemitério da cidade de Arkham, e estávamos especulando sobre o Inominável”.  Aqui está, mais do que o terror, o espírito antiquado e seiscentista do autor, e a revelação de seu temperamento. Ele era alguém que, num fim de tarde dourado e tranquilo, sentava-se ao lado de um amigo para remexer nas entranhas do Universo, e descobrir a fonte primordial do Estranho, do Bizarro, do Inesperado.