Os anti-heróis de Oton Lustosa
Por Cunha e Silva Filho Em: 20/09/2021, às 11H38
OS ANTI-HERÓIS DE OTON LUSTOSA (14)
Toda ficção, de certa forma, se parece. O que a diferencia de outra é o nível de qualidade literária, de invenção e originalidade. Os temas estão aí prontos a serem desenvolvidos pelos prosadores. Os criadores, em geral, são atraídos por determinados aspectos da realidade, porque lhes são mais familiares e neles se sentem com mais capacidade de transformar realidades sentidas ou vividas em mímese, tomando o conceito aristotélico no sentido de deformação transformadora do chamado real empírico em imaginário – sede fecundante da criação literária.
Há casos mesmo em que o escritor se confunde com próprio exercício de sua função, como se pertencesse ao mundo mesmo por ele inventado. Na literatura brasileira, conhecemos pelo menos três casos desses autores autoenvolvidos com o tipo de realidade transposta para a ficção: Antônio Fraga, Plínio Marcos e João Antônio. São três artistas da dicção marginal, da ficção marginal, da biografia marginal. Os três trabalharam a matéria humana dos “despojados sociais” com obras que seguramente irão perdurar na nossa história literária.
Essas reflexões me vêm a propósito de leitura que acabei de fazer de um ainda jovem escritor piauiense, Oton Lustosa, agora estreando-se na área de ficção com o romance Meia-vida, edição particular publicada pela editora Komedi, São Paulo, 1999, 153 p. Nas orelhas do livro, preparadas pelo autor, lemos que ele é também autor de obras jurídicas e, pelo material informativo enviado a mim com generosa dedicatória, vejo que teve boca aceitação critica dentro e fora do Piauí.
No entanto, de tudo isso o que sobreleva destacar é a disposição saudável que o autor demonstrou no tocante à função do escritor e aos rumos que deseja imprimir à sua produção literária: explorar o filão social. Já nos prometeu duas obras novas nos gêneros do romance e do conto. Vamos aguardar e torcer por ele. Confesso que isso me agrada, porquanto a minha pesquisa atualmente está voltada para autores que tematizam problemas e conflitos oriundos de estratos baixos da sociedade brasileira.
O livro de Oton Lustosa tem sua tônica direcionada para os despossuídos, segundo acentuamos, para uma faixa incerta entre o lumpesinato e o proletariado. Na realidade, a sua ficção de estreia bem poderia se incluir naquela classificação de personagens conhecidos como pobres diabos da literatura brasileira, expressão que, segundo José Paulo Paes em penetrante ensaio de título “O pobre diabo no romance brasileiro,” que faz parte da sua obra A aventura literária (São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 39-61), foi usada pela primeira vez por Moisés Velinho.
Duas qualidades vejo, antes de tudo, no estreante Oton Lustosa: o domínio na manipulação da trama, do plot, e a capacidade de criar personagens, alguns dos quais, pela força dramática, decerto permanecerão em nossa memória de leitor: Zezão, Belim e Maria de Fátima saco bons exemplos de personagens convincentes e que têm vida própria. A outra qualidade diz respeito à visão social que o ficcionista parece desejar transmitir como elemento-chave de sua literatura e aqui, de certa forma, se nos impõe um impasse quanto à classificação dessa obra, que reuniria traços de romance de costumes, de romance político e de romance social, tal a mistura de aspectos englobados no livro. Nele se divisam tipos diversos do universo social, o engraxate, a prostituta, o vagabundo, o camelô, o feirante, o político, o delegado, o estudante, o marginal, o viciado, enfim, uma gama imensa de tipos sociais que nos vão permitir uma radiografia de um período determinado da vida social de Teresina, a década de oitenta.
A Teresina retratada no romance sofria ainda a amargura da ditadura militar. Pouco a pouco nela surgiam as favelas, uma superpopulação já dominava a cidade, provocada pelo êxodo rural em massa em direção à capital, aumentando as áreas periféricas, a violência daí decorrente. Esse fluxo migratório fez com que as capitais brasileiras crescessem e ao mesmo tempo se degradassem em qualidade de vida. Teresina perderá a sua vidinha tranquila de cidade pequena. Uma outra praga social já ia surgindo, o narcotráfico.
Um painel taco variado de tipos sociais de certa forma impede que certos personagens de maior importância sejam adequadamente elaborados, como é o caso do protagonista, Santino. Em termos dele parece convergir a narrativa. Bem que Santino podia ter sido mais aprofundando como personagem. Paradoxalmente, não é que adquire maior densidade como criação ficcional. Sua autenticidade me parece inconclusa, artificial, em comparação com outras figuras subalternas do romance. Ele possui, sim, sentimentos de bondade e integridade, mas tais sentimentos me soam, no contexto ficcional, forçados. Sua elaboração não me parece atribuir um sopro da vida. Só em alguns momentos Santino se impõe como criação ficcional, o que se vê, por exemplo, no último capítulo de título “recado,” onde é visível uma melhoria da força dramática desse personagem e, portanto, de convencimento de sua verdade ficcional.
Ao contrário, Zezão é um personagem, embora secundário, muito mais bem composto esteticamente. Até Belim, o vagabundo, no meu entender, um personagem com certos traços pícaros, chega a ter considerável densidade psicológica. Naquela passagem da obra onde a mãe de Santino, Mundica, passa mal em mais um dia de canseira como fina cozinheira de caldo de carne moída na feira do Troca-troca de Teresina. Belim é responsável por aquele instante de comovente solidariedade, n o qual mostra toda a sua veracidade de personagem. Estamos diante de uma obra de ficção composta em geral de anti-heróis, de fracassados, de seres que não conhecem a felicidade completa.
Ele próprio, Santino, ao final da narrativa, de resto, um capítulo exemplarmente construído dada a sua forte carga de tragédia shakespeariana, acaba sua trajetória como um fracassado no amor, nas suas aspirações idealistas. Cassiano Amorim é outro exemplo de inadequação com os objetivos de vida: separa-se da mulher, não realiza seus sonhos de político, pois não consegue atender ao pleito de seu pai nem tem, como pai, tranquilidade com o filho Julião, um drogado, um degenerado. Mundica, mãe sofrida e angustiada com o filho mau-caráter, a filha prostituta, é mais um exemplo de desastre. Desses fracassados escapam Maria Celeste, o pai dela, Francisco Carroceiro, Zezão, o último dos quais, na sua rudez sensata e humana, se reconcilia com a sua amada Maria de Fátima.
Meia-vida – metáfora dessas vidas não resolvida e contraditórias, cercadas de frustrações – ganha vulto como ficção com algumas característica de neorrealismo. Seu poder de narrativa, pra mim provém da sua natureza simples de expor certas “ manchas sociais” urbanas de uma série de situações do povo brasileiro com alguma instrução. O diálogo é escasso, já que o narrador em terceira pessoa prefere, por sua conta e risco, relatar as ações do presente e do passado combinadas harmoniosamente com o discurso indireto livre.
Quanto à linguagem, Meia-vida não tem um sentido de renovação, de obra transgressora de códigos narrativos tradicionais. Segue ainda padrões conhecidos desde o romance nordestino de 30, revelador de um estilo literário com correção de linguagem, domínio efetivo da língua, ênfase no social. Não traz, porém, modificações estilísticas de monta, com apenas algumas novidades pessoais de cunho meramente gráfico, como o recurso de aportuguesar toda palavra estrangeira, hábito que não sei se é realmente o melhor procedimento nesse caso.
Esse desvio de rigidez ortográfica o leva, isso não deixa, porém, de ser louvável, a personalizar o uso de algumas situações gramaticais, como criar vocábulos de e formas abreviadas e reduzidas. É o caso de “peefe”, referindo-se ao prato feito. Também não sei se foi deliberado o desvio normativo da colocação pronominal na frase “houvera preparado-se para aquela tarefa especial” (grifo meu), quando a disciplina gramatical não admite ênclise do pronome nas locuções verbais com o verbo principal no particípio.
A referida frase se encontra na página 39. Algumas expressões ou palavras que não via há muito tempo em texto literário ou mesmo de viva voz utilizando regionalismo lexical piauiense tiveram, para esse leitor piauiense, mas de ouvido já um tanto esquecido e distante, um sabor especial e saudosista. Para leitores do Sul ou de outras regiões do país esse léxico desconhecido pode constituir fonte de pesquisa linguística. Entre muitas, poderia mencionar “ de borco,” “alva,” fardados,” este último para se referir a uniformes escolares, “uma pinoia, ” “trouxa,” este para designar o órgão genital masculino.
Reunindo qualidades mais que defeitos, a estreia de Oton Lustosa me parece a de um ficcionista já com desenvoltura técnica de narrar e descrever aliada à boa dose de imaginação. Sem tais atributos não se consegue ser um escritor de verdade.
NOTA: A resenha acima foi revisada e atualizada graficamente com ligeiras modificações sintáticas.