Cecília Meireles
Cecília Meireles

[Carlos Evandro Martins Eulálio]

Descendente de açorianos de São Miguel, pelo lado materno, Cecília Meireles nasceu no dia de São Florêncio, 7 de novembro de 1901, no Rio de Janeiro, e aí faleceu em 9 de novembro de 1964, aos 63 anos de idade.  O pai, Carlos Alberto de Carvalho Meireles, funcionário do Banco do Brasil, faleceu aos 26 anos, três meses antes do nascimento da filha e a mãe, a professora municipal Matilde Benevides, faleceu quando Cecília tinha apenas três anos de idade. Ela foi criada pela avó materna, a açoriana Jacinta Garcia Benevides, sobre a qual assim se refere:

Vovó era uma criatura extraordinária. Extremamente religiosa, rezava todos os dias. E eu perguntava: “Por quem você está rezando?“ “Por todas as pessoas que sofrem.” Era assim. Rezava mesmo pelos desconhecidos. A dignidade, a elevação espiritual de minha avó influiu muito na minha maneira de sentir os seres e a vida.

 

À avó, Cecília Meireles dedicou um poema elegíaco constituído de 8 partes.  Eis a sua primeira parte:  

Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos.

Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído.

...

No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva,

Modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.

 

Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade

da lua.

 

Vi aquele dia levantar-se inutilmente para as tuas pálpebras,

e a voz dos pássaros e das águas correr sem que a recolhessem

teus ouvidos inertes.

 

Onde ficou teu outro corpo? Na parede? Nos imóveis? No teto?

 

Inclinei-me sobre o teu rosto, absoluta, como um espelho

e tristemente te procurava.

 

Mas também isso foi inútil, como tudo mais.

 

                                                           Elegia: Cecília Meireles

Cecília Meireles fez o curso primário (fundamental) na Escola Estácio de Sá do Rio de Janeiro, em 1910, tendo recebido de Olavo Bilac, então Inspetor Escolar, uma medalha de ouro com o nome gravado, por ter concluído o curso com “distinção e louvor”. (BLOCH,1989).

No quadro literário brasileiro, a crítica situa Cecília Meireles na segunda fase do Modernismo Brasileiro, denominada Fase de Construção, seguindo a vertente de poetas intimistas, comprometidos com uma lírica essencial, antipitoresca e antiprosaica.

Com a obra Viagem, em 1938, ela recebeu o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Com esse livro destacou-se entre os poetas brasileiros de primeira linha. Essa obra constitui um marco da moderna poesia brasileira.

Para o crítico Darcy Damasceno, “Viagem vale pela perfeição definitiva de uma natureza artística em sua plenitude e de um estilo poético em seu ponto de perfeição. Na linha compreendida entre esse livro e “Retrato Natural” (1949), exibe-se um painel temático de rara amplitude em nossa poesia moderna. ” (DMASCENO, 1987).

Esse ponto de vista de Darcy Damasceno é reforçado por Mário de Andrade ao afirmar que “Viagem, guardando poemas que abrangem quase uma década de vida criadora, apresenta enorme variedade e é boa prova desse ecletismo sábio, que escolhe de todas as tendências apenas o que enriquece ou facilita a expressão do ser.” 

Do livro Viagem, transcrevemos abaixo o poema “Motivo", um de seus textos mais conhecidos:

 

EU CANTO porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre, nem sou triste:

sou poeta.

 

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

 

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

- não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

 

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno e asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

-  mais nada.

 

Esse poema de Cecília Meireles é um dos textos líricos mais analisados por professores e estudiosos da poetisa. Tema, estrofação, rima, ritmo, seleção vocabular, linguagem conotativa, sobriedade e subjetividade são os principais componentes de sua estrutura trabalhados magistralmente por Cecília Meireles, que fazem com que esse texto seja agradável de se ler.

Quanto à sua interpretação, após acurada análise que faz desse poema, Rogério Lobo Sáber conclui afirmando que 

[...]

Cantar é tudo para a poetisa e, como a canção tem origem no instante, e instante, como vimos, simboliza os momentos da própria vida, faz-se necessário utilizar todos os recursos disponíveis para tornar o poema expressivo, vivo. Transpondo a mesma ideia à questão da existência, a poetisa nos mostra que devemos utilizar todos os recursos que temos para que nossa vida (por mais efêmera que seja), tenha vida, expressividade, de modo a despertar em nós os poetas latentes que são capazes de transcender, de entender a verdadeira essência de nossos caminhos e de nossos recônditos — pois só um movimento em direção à compreensão sublime configura chance de completude humana. ” (SÁBER, 2011)  

 

A seguir, selecionamos alguns trechos da última entrevista de Cecília Meireles. Trata-se de um depoimento que mostra aspectos significativos de sua personalidade. Ele foi concedido à revista Manchete, no dia 16 de maio de 1964 e publicada no livro Pedro Bloch Entrevista.

Por comodidade didática, intitulamos os excertos da entrevista, conforme o assunto abordado.      

 

Sobre gente: Tenho um vício terrível. Meu vício é gostar de gente. Você acha que isso tem cura? Tenho tal amor pela criatura humana, em profundidade, que deve ser doença.      

 

Sobre o magistério: Sempre gostei muito de ensinar. Trabalhei na Escola Deodoro, ali junto ao relógio da Glória. Fui professora de Literatura da Universidade do Distrito Federal. Criei a primeira biblioteca infantil, ali onde era o Pavilhão Mourisco. Criança que não tivesse onde ficar podia encontrar o livro que lhe faltava, coleção de selos, moedas, jogos de mesa, sonhos, histórias e as explicações de professoras prontas e atentas. [..] Também ensinei História do Teatro na Fundação Brasileira. O resto da minha atividade didática está nas conferências em que sempre procuro transmitir algo.

 

Sobre a leitura: Vivo constantemente com fome de acertar. Sempre quase digo o que quero. Para transmitir, preciso saber. Não posso arrancar tudo de mim mesma sempre. Por isso leio, estudo. Cultura, para mim, é emoção sempre nova. Posso passar anos sem pisar num cinema, mas não posso deixar de ler, deixar de ouvir minha música (prefiro a medieval), deixar de estudar, hindi ou o hebraico, compreende? [...] O meu interesse pelos livros transformou-se numa vocação de magistério. Minha mãe tinha sido professora primária, e eu gostava de estudar em seus livros. Desses velhos livros de família, as gramáticas, sobretudo a latina e a italiana, me seduziam muito. Assim também as partituras e livros de música.

 

Sobre a vida pessoal: Casei com vinte anos. Tenho três fllhas: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda. As três são bibliotecárias, mas a minha biblioteca não está fechada. Maria Fernanda você conhece como atriz, não é mesmo? As três têm em comum uma bondade comovente, mas são de temperamentos completamente diferentes. Tenho cinco netos. Viúva, casei em 1940 com Heitor Grilo, um homem admirável pela sua capacidade técnica em sua extraordinária fé no ser humano, em sua ânsia de tudo elevar. Basta dizer a você que, nesta primeira e única doença que tive e que me segurou cinco meses, ele não arredou pé, um momento de carinho, gesto e palavra prontos, apesar de suas inúmeras responsabilidades e ocupações. Conheci-o quando fui entrevistá-lo certa vez. Depois ... nunca mais o entrevistei. Entendemo-nos até calados. [..]. Estudei canto e violino. Abandonei. Era preciso ganhar a vida e poesia se pode criar até numa viagem de bonde. Mesmo nas reuniões em que muita gente discutia eu era capaz de me ausentar em meu mundo e construir. 

 

Sobre a Bíblia: Só viajo com a Bíblia. Bíblia é uma biblioteca. Tem tudo: história, poesia, religião. Já disse que, se tivesse que escolher o meu livro para uma ilha deserta, levaria a Bíblia. Ou um dicionário.  

 

Sobre a palavra: Se eu inventei palavras? Não. Isto nunca me preocupou. No inventar há uma certa dose de vaidade. "Inventei. É meu". O que me fascina é a palavra que descubro, uma palavra antiga abandonada e que já pertenceu a tanta gente que a viveu e sofreu! [...]. Tenho pena de ver uma palavra que morre. Me dá logo vontade de pô-la viva de novo. Solombra, meu novo livro, é uma palavra que encontrei por acaso e que é o nome antigo de sombra. Era o título que eu buscava e a palavra viveu de novo.

 

Sobre amigos: Tenho amigos em toda parte. Mas sou feito o Drummond que é tão amigo quase sem a presença física. Esse meu jeito esquivo é porque eu acho que cada ser humano é sagrado, compreende? E esse pudor de invadir, esse medo do perto. Eu sou uma criatura de longe. Não sei se me querem, mas eu quero bem a tanta gente! Sou amiga até dos mortos. Amiga de muita gente que nem conheci. Você não imagina quanta gente eu levo ao meu lado. E fico emocionada quando penso como uma criatura só recebe tanto de tantos lados, de tantas pessoas, de tantas gerações!

 

Sobre viajar: Cada lugar aonde chego é uma surpresa e uma maneira diferente de ver os homens e coisas. Viajar para mim nunca foi turismo. Jamais tirei fotografia de país exótico. Viagem é alongamento de horizonte humano. Tenho, nos lugares mais diferentes, amigos à minha espera. [...]. Você já reparou que, entre centenas, em cada país, nós temos sempre aquela pessoa, que, sem mesmo saber, espera por nós e, quando nos encontra, é para sempre? Por isso é que eu gosto tanto de viajar, visitar terras que ainda não vi e conhecer aquele amigo desconhecido que nem sabe que eu existo, mas que é meu irmão antes de o ser.

 

Sobre idiomas e folclore: Viagens, folclore e idiomas são uma espécie de constante em minha vida. Comprei livros e discos de hebraico. Estudei hindi, sânscrito. O desejo de ler Goethe no original me obrigou a estudar alemão. Não estudo idiomas para falar, mas para melhor penetrar a alma dos povos. [..] Gosto de estudar o que me dá conhecimento melhor das pessoas, do mundo, da unidade. Através dos idiomas e do folclore, vejo até que ponto somos todos filhos de Deus. A passagem do mundo mágico para o mundo lógico me encanta.

 

Sobre o futuro: Nunca esperei por momento algum na vida. Vou vivendo todos os momentos da melhor maneira que posso. Quero realizar coisas, não para ser a autora, mas para dar-me, para contribuir em benefício de alguém ou de ou de alguma coisa.

 

Sobre a juventude: A juventude de hoje? Acho que são meninos que não têm tempo de crescer. Saltam do apartamento fechado para a calçada de mil solicitações, sem armadura, sem objetivo, sem a necessária religiosidade. A vida passa a ser uma coisa zoológica. Muitos crescem zoologicamente. Inventam modas, mas como não têm essência de verdade, as modas não pegam. As frustrações crescem. Felizmente muitos se realizam apesar de tudo. Cada geração acredita que traz uma nova voz e uma nova mensagem.

 

Sobre educação: Educação, para mim; é botar, dentro do indivíduo, além do esqueleto de ossos que já possui, uma estrutura de sentimentos, um esqueleto emocional. O entendimento na base do amor.

 

Para concluir

 

 

Estão presentes nos poemas de Cecília Meireles não apenas os temas de natureza lírico-confessional, como a solidão, o amor, a morte, o eterno e o efêmero, mas também os de natureza política e social. Vamos encontrá-los no Romanceiro da Inconfidência, sua obra mais conhecida. Nela Cecília Meireles aborda os acontecimentos de Vila Rica à época da Inconfidência Mineira. Referindo-se a esse texto, diz Murilo Mendes:

“De fato, o Romanceiro da Inconfidência, publicado há alguns meses, resulta de uma combinação homogênea entre força poética, domínio da língua, erudição e senso do detalhe histórico valorizado em vista de uma transposição superior, própria ao código da poesia. [...]. Eis no melhor sentido, uma amostra de poesia social de alta categoria.” (MENDES, 1987)

Como educadora sempre se preocupou com os problemas da infância, quando exercia o magistério. Além de escrever inúmeros poemas infantis, como Ou isto ou aquilo, A bailarina, O Eco e tantas outras, em 1934 criou a primeira Biblioteca Infantil do Brasil, instalada no antigo Pavilhão Mourisco, no bairro Botafogo do Rio de Janeiro.  

Era uma mulher à frente de seu próprio tempo.  Deixou uma obra que transcende sua atividade de poeta. Como defensora da Escola Nova no Brasil, dirigiu no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, no período de 1930 a 1934, uma página diária dedicada aos assuntos de ensino, o que a levou a empenhar-se ativamente nesse movimento de renovação. (MEIRELES, 1987).

 

RERERÊNCIAS

 

ANDRADE, Mário. Em face da Poesia Moderna. In Cecília Meireles: Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1987, p.37

 

BLOCH, Pedro. Pedro Bloch Entrevistas. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1989.

 

DAMASCENO, Darcy. Poesia da sensível e do imaginário. In Cecília Meireles: Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1987, p 18.

 

MEIRELES, Cecília. Obra poética, volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1987, p.63

 

____________ Problemas da Literatura Infantil. São Paulo: Global, 2016.

 

MENDES, MURILO. A poesia social. In Cecília Meireles: Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1987, p.52.

 

SÁBER, Rogério Lobo. Cecília Meireles: uma travessia poética. In Revista Memento, v. 2, n. 2, ago. - dez. 2011. Revista do Mestrado em Letras Linguagem, Discurso e Cultura – UNINCOR - ISSN 1807-9717, p.150

 

http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/CeciliaMeireles.htm. Acessado em7/11/2021