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 Lucilene Gomes Lima 

 

                       A TEMÁTICA HISTÓRICA DO CICLO DA BORRACHA

 

 Origem e exploração da hévea

 

 

        Ainda segundo Rodrigues[1], entre os povos que se espalharam pela América do Sul, uma das subdivisões da tribo dos Nauhás que desceu para o rio Amazonas difundiu o uso da goma elástica. Essa subdivisão tornou-se conhecida como a tribo dos Omáguas. A forma como os Omáguas extraíam e preparavam a goma elástica era desconhecida até o século XVI. Quando as missões portuguesas, em fins do século XVII, começaram a ter contato com as tribos amazônicas, obtiveram com essas tribos os produtos que foram enviados para a Europa. Entre esses produtos estavam os objetos feitos de goma.

        As denominações seringueira e borracha surgiram por um acaso lingüístico. A primeira deveu-se a uma relação metonímica, uma vez que a seringa sempre aparecia entre os utensílios fabricados com o látex, levando os portugueses a denominarem a árvore que produzia esse leite de seringueira. Quanto à segunda denominação, surgiu da associação que os portugueses fizeram em relação aos vasos feitos de goma elástica pelos índios, os quais lhes pareceram semelhantes aos objetos de couro que utilizavam e denominavam de borracha. Por extensão de significado, borracha passou a denominar a substância de que eram feitos os objetos de látex pelos índios.

        Os índios trocavam, com os missionários portugueses, bolas, seringas ou borrachas por bugigangas. Os missionários haviam descoberto que a goma era útil para proteger seus pés da umidade excessiva e cobriam os sapatos com ela. Posteriormente, passaram a confeccionar os próprios sapatos da goma. Já em 1755, os calçados de borracha eram utilizados no Pará e em Lisboa. Aproveitou-se também a capacidade impermeável da borracha para confeccionar mochilas para os soldados portugueses. Após Charles Marie de La Condamine enviar para a França a primeira amostra da goma elástica, em 1735, iniciou-se o emprego industrial da goma na Europa. As exportações de sapatos e seringas pelo Pará datam de 1850. Além de objetos manufaturados, exportava-se também a borracha bruta.

        Para que a goma pudesse oferecer o máximo de rentabilidade à indústria, foi necessário descobrir uma forma de torná-la resistente ao calor e ao frio e manter sua elasticidade inalterada. Através do processo de vulcanização, desenvolvido simultaneamente pelo inglês Thomas Hancook e pelo americano Charles Goodyear em 1844[2], isso se tornou possível. A partir daí, a borracha deixa de representar um pequeno comércio de manufatura, existente desde os tempos da colônia, e passa a ser uma matéria-prima requisitada pelo comércio mundial:

 

A procura intensiva que os mercados consumidores da Europa e da América  passaram a fazer da borracha silvestre, ante a utilização cada vez maior por que ela se apresentava aos industriais, animando as solicitações pela alta dos preços que pagavam , deu um alento fora do comum à atividade coletora. Onde existia árvore produtora de látex, registrou-se a aventura. Nas Américas e na África. Ora, de todas as áreas onde se operava a exploração da floresta com aquele objetivo, a Amazônia era a que oferecia mais seguras e amplas possibilidades pela quantidade de seringueiras que parecia fabulosa pela riqueza que as árvores apresentavam em látex.  A busca às seringueiras pareceu, em conseqüência, sem fim e negócio de possibilidades ilimitadas [...][3].

 

        Os preços em alta da borracha no mercado internacional atraíram uma corrida à extração do “ouro negro”. As terras agrárias foram sendo abandonadas[4] em função da extração do leite das seringueiras nas regiões do Marajó, Xingu, Jary, Guamá, Acará, Moju, Madeira, Solimões, Purus. A extração do látex também se deu em terras da Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela.

        A falta de estabilidade na terra, o espírito aventureiro e arrivista que caracterizaram as relações econômicas no “ciclo da borracha” são, muitas vezes, apontados como falhas que levaram esse sistema extrativista da prosperidade econômica à derrocada. As bases que fundamentavam a lógica desse sistema, entretanto, não se apoiavam numa economia fixa e sim de transplante. A própria estrutura física dos seringais demonstrava que o negócio da borracha exigia apenas uma infra-estrutura primária que possibilitasse ao patrão ou seringalista dirigir o processo de extração do látex baseado numa contabilidade que atava o seringueiro ao trabalho. As condições de moradia do seringalista e do seringueiro eram improvisadas de modo que cumprissem seu papel no sistema extrativista. O tapiri do seringueiro não era exatamente uma moradia, mas o local de trabalho onde ele transformava, num processo rudimentar, o látex extraído das seringueiras em pélas de borracha. O fato de que o sistema não promoveu uma fixação à terra está na razão de seu funcionamento[5], pois se tivesse promovido essa fixação não teria se realizado da forma que se realizou e os próprios elementos que o integravam não teriam tido na pirâmide do sistema extrativo a posição que tiveram. Passaremos a explicitar essas posições a seguir.

 

As firmas importadoras-exportadoras e as casas aviadoras

 

        As bases do sistema extrativista da borracha compunham uma pirâmide em que no topo estavam as firmas importadoras-exportadoras, representantes do capital estrangeiro, mais especificamente dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Alemanha. Essas firmas  movimentavam o capital de giro do ciclo, não permitindo nenhuma base sólida à economia local, como ressalta Antônio Loureiro:

 

As firmas exportadoras eram, na realidade, as detentoras do capital movimentador do ciclo, que poderia ser retirado de circulação, em tempo relativamente rápido, como ocorreu, pois suas transações abrangiam, apenas, a compra da matéria-prima e a sua venda em mercado certo, sempre em alta. A qualquer sinal de crise, o que podia ser previsto com antecedência, por não terem capital imobilizado, sairiam da região com relativa rapidez. Os lucros eram investidos no exterior, ou em companhias de melhoramentos urbanos, garantidos pelo País.[6]

 



[1] Ibid., p. 7-8.

[2] CF. Leandro TOCANTINS,  Amazônia: natureza, homem e tempo, p. 98.

[3] Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro,  p. 104-5.

[4] Sobre esse aspecto, Arthur Reis comenta: “[...] Todas as energias se deslocaram das tarefas agropecuárias para a extração do látex das héveas, num regresso vertiginoso à etapa por que se iniciara o processo econômico da região [...]” (Ibid., p. 41). Samuel Benchimol ressalta que, em virtude da febre do enriquecimento fácil, o ciclo da borracha não poderia promover estabilidade na terra: “[...] Homens à procura de fortuna, não à procura de terra. Daí a instabilidade, nervosismo, palpitação. É a borracha na sua função atrativa, fazendo ‘foco de apelos’ ou antes, dando ‘apetite de seringa’,  na gíria do imigrante [...] (Romanceiro da batalha da borracha,  p. 38).

[5] “As condições de acumulação e crescimento do capital na economia da borracha não foram potencializadas de modo a permitir um avanço da divisão social e técnica da produção. Esta, limitada pela concentração de interesses na monoprodução e pelo sistema de aviamento, apresentava-se num quadro insignificante e incapaz de transformar qualitativamente o padrão econômico [...]” (Eloína M. dos SANTOS, A rebelião de 1924 em Manaus, p. 31)

[6] Antônio J. S. LOUREIRO, Amazônia: 10.000 anos,  p. 172-3.