Presidente da APL, profsa. Fides Angèlica Veloso Omatti; Nelson Nery Costa, Joaquim Almeida e Álvaro Mota
Presidente da APL, profsa. Fides Angèlica Veloso Omatti; Nelson Nery Costa, Joaquim Almeida e Álvaro Mota

Da Redação de Entretextos

Em concorrida solenidade na Academia Piauiense de Letras, o ex-presidente da entidade e presidente do Conselho Estadual de Cultura, Dr. Nelson Nery Costa, relançou três obras: Direito Municipal Brasileiro (9ª edição), que tem o prefácio de Celso Antônio Bandeira de Melo, o mais importante administrativista vivo do país e um dos mais significativos juristas democráticos pelas suas lutas e mobilizações políticas;  A literatura de Barras do Marataoã, além da 8ª edição do Vademecum Jurídico 2024, pela Editora Lawbook, de São Paulo, de autoria de Nelson Nery Costa, Joaquim Barbosa de Almeida Neto e André Brandão Nery Costa.

Direito Municipal Brasileiro (9ª edição) teve apresentação dos advogados Joaquim Barbosa Almeida  e Guilherme Costa.A literatura de Barras do Marataoã foi apresentada pelo editor de Entretextos, prof. Dilson Lages, que ocupa a cadeira 21 da Academia Piauiense de Letras. A seguir, o discurso de apresentação de A literatura de Barras do Marataoã.

Prof. Dílson Lages e o autor de A literatura de Barras do Marataoã, Nelson Nery Costa. Foto: Magal Santos

Excelentíssima senhora presidente da Academia Piauiense de Letras, dr. Fides Angélica Veloso Omatti, no nome de quem saudamos os demais componentes da mesa.

Saudamos a distinta audiência nas figuras de todos os conterrâneos que se fazem presentes.

Senhores e senhoras,

A maioria de nós tem muitas pátrias. A primeira delas é o lugar em que vivemos. Ancoramo-nos a ele pelo trabalho, pelo sonho, pelas oportunidades, pelo afeto, pelas relações de sociabilidade mais imediatas e vitais ao existir. Na busca de pertencer a um tempo e a um lugar, vamo-nos fixando a outras pátrias: o chão de nascimento, a terra da infância, ou simplesmente a da ancestralidade, que nos chega em narrativas mais vivas do que quaisquer outras, porque intermediadas pela força criativa da imaginação ou da memória oral.

Esta obra, A literatura de Barras do Maratoã: a escrita dos filhos de Barras e de seus descendentes insere-se numa tendência contemporânea de valorização da identidade regional por meio do ensino de literatura local, ainda da história e da geografia. Em muitas cidades brasileiras, esse objeto do conhecimento se tornou matéria escolar, amparada por lei municipal. No Piauí, são exemplos Parnaíba, Pedro II e Campo Maior, municípios cuja tradição em defender e divulgar seu patrimônio imaterial se faz meta pelo ensino regular da cultura local. Com esta obra, Dr. Nelson Nery cria as condições para que Barras do Marataoã possa se espelhar na bem-sucedida prática que já é realidade em muitas cidades. Barras do Marataoã tem muito o que contar.

Senhores e senhoras,

Barras do Marataoã, a 122 quilômetros de Teresina-PI, é corriqueiramente lembrada pela pujança dos recursos da natureza e pelo destaque nas estruturas de poder até a primeira metade do século XX. Município de abundância de rios e riachos, desfrutou no passado recente dos bônus da criação extensiva do gado e do extrativismo vegetal e, berço de forte elite agrária, se destacaria no cenário político local, regional e nacional. Desse contexto, surgem notáveis expressões nos mais variados campos da atividade humana, sendo a arte, sobretudo a literária, campo fértil dos barrenses.

Quem conhece a cidade se encanta com a relação de cumplicidade entre os habitantes e as águas. O rio Marataoã é fonte de pertencimento, de orgulho natural, sem uma explicação exata, que não o afeto nascido das entranhas do amor de verdade. Torna-se esse curso d’água um dos locais preferidos de entretenimento; às suas margens, gerações de todas as épocas desfrutam do bom papo, bebericam aperitivos, jogam conversa fora, contemplam a vida e o tempo presente. Sentem a existência pulsar como o movimento ou a calmaria das águas.

A força delas enebria os olhos em muitos pontos do município. Na ponte de acesso ao centro, a Barragem do Pesqueiro, por muito tempo, um dos locais preferidos para banhos aos domingos, o Marataoã se perde na fusão do horizonte à curva que esconde seu percurso. Por diversos pontos da cidade, o curso d’água é parada certa. Para-se em espaços como O Flutuante, no fim da Rua do Fio, tablado de madeira suspenso sobre o rio, de onde o banhista se torna íntimo da natureza. Nas Churrascarias Brisa e O Parente, nas cercanias do bairro Boa Vista, essa intimidade tem o requinte do distanciamento dos elementos urbanos, e banhar-se confirma-se como irrecusável.

Há seis quilômetros do centro, as correntes tempestuosas do Longá dão vida à imaginação. Pedras constroem feição física a coisas inanimadas e até o movimento em ondulação ganha vida. No atrito das ondas às pedras, com a fúria do que desce veloz, à procura de outras correntes, as sensações do observador apressam a hora. Verte-se o Longá em um dos valorizados pontos de sociabilidade quando o inverno promove o correr das águas.

No coração do núcleo urbano, o rio Marataoã serpenteia ruas. Forma, à beira da área central, paralelamente à rua David Caldas (antiga Coronel José Antônio Rodrigues), em avenida sabiamente urbanizada, uma praia natural. Local valorizado para passeios e caminhadas, cartão postal da década atual. Dali se contempla bonito pôr do sol no reflexo espelhado das águas cristalinas. Dali se admira a tão cantada Ilha dos Amores, “coração do rio Marataoã”, como a descreveu em belo poema-canção Francy Monte. A ilha, onde outrora se sediaram festivos eventos coletivos: piqueniques e festas organizadas por autoridades.

A cidade enxerga-se em seu principal rio. Em suas memórias das primeiras décadas do século XX, de um tempo de cercas que iam até mergulhar n’água, o professor, médico e ex-governador Leônidas de Castro Mello recorda com ternura imorredoura a integração das casas e de sua gente ao Marataoã da infância:

“O rio do lado Oeste, passa tão perto da cidade que, nalgumas casas, as cercas dos quintais vão até alcançar as águas que penetram alguns metros adentro. O rio fecha assim, servindo de cerca, o fundo dos quintais. Essa margem, na parte que corresponde à cidade, é inteiramente destituída de vegetação e, por isso, de várias ruas, pode-se avistar o grande espelho de superfície d’água, sempre tranquilo, encrespado pelo vento que sopra manso a qualquer hora. Há pontos destinados a banho, outros à lavagem de roupas, outros à apanha de água para usos domésticos” (MELLO: 2019, 70).

Desse sentimento de fascínio pela natureza, que é de toda uma gente molhada dos banhos dos rios, riachos e córregos, também desfruta o historiador Herculano Moraes:

“(...) Paisagem bonita, a região é minada por cintas d’água, constituídas dos rios Marathaoan e Corrente e riachos Ininga, Gentio, Riachão e Santo Antônio.

No inverno, quando as chuvas engravidam a terra, as águas sobem de nível e o Longá, a alguns quilômetros da cidade, parece um mar, rugindo ondulante, jogando suas ondas nas pedras negras que lhe envolvem o leito, no belíssimo panorama que se descortina da grande ponte de cimento, de 270 metros.

A paisagem é suave, harmonizante. Na entrada da cidade, o Marathaoan, passando sob extensa ponte, oferece ao visitante panorâmica visão do bucolismo artístico no verde-gaio das árvores e arbustos que se estendem às suas margens até se perder de vista.

Da barragem de concreto que se eleva das águas tépidas e cristalinas do rio, um show de biquinis e de juventude é adicionado ao uísque e à cachaça com tira-gosto de peixe frito, pitomba e galinha assada nas manhãs repousantes de seus domingos e feriados” (MORAES: 1974 – 7-9).

Assim como a natureza dadivosa, ressoam no imaginário coletivo as representações históricas sobre a ocupação de espaços de poder por filhos de Barras. Não raro mencionadas pela versão de alguns estudiosos. Como a participação na Guerra do Paraguai (numeroso o destacamento que partiu das fazendas da região; entre os abatidos na guerra, conforme registra Monsenhor Chaves, está o comandante de um agrupamento, professor oeirense de primeiras letras há muito radicado em Barras, Francisco Luiz Pereira de Carvalho e Silva, de quem descende, em 5ª. geração, o autor destas linhas). Como a fundação de uma sociedade libertadora de escravos por Estevão Lopes Castello Branco. Como a presença da luz elétrica oriunda de usina, bem antes de comunidades mais avançadas, à frente o intendente José Osório Pires da Mota. Como a ocupação de postos de poder no Executivo Estadual, em rápida ascensão, mas contínuo intervalo de tempo, recebendo o município o epíteto altivo de “Terra dos Governadores”.

Sobre a ocupação dos espaços de poder, na última década do século XIX e primeira metade do século XX, pelo principal grupo originário de Barras do Marataoã, a numerosa família Pires Ferreira (ramificação dos Castello Branco/Carvalho de Almeida) diz versão do ex-governador e engenheiro Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves a respeito de um dos principais representantes desse grupo oligárquico que

O Marechal Pires era, não sei, o mais velho dos filhos do velho José Pires. Rapaz ativo, forte, habituado à vida do campo da família rural piauiense em que predominava o vaqueiro. Porque foi o vaqueiro que nos fez, deu nascimento à sociedade piauiense. Ele era um homem, um latagão forte, que não quis ir ao latim, mas foi às armas com a Guerra do Paraguai. Ele se fez voluntário, foi à luta, lá se distinguiu como um dos combatentes valorosos. Voltou como oficial e só depois de oficial foi estudar, depois da guerra. Elevando-se de posto em posto, chegou ao macharelato. Fez parte das lutas Florianistas, adquiriu um círculo de relações muito grande no Rio Grande, no Rio de Janeiro, e era da teoria de que (...) o conveniente na vida era manter relações com gente de alta categoria e procurar assimilar-lhes os costumes e os procedimentos” (DOMINGOS NETO: 2010, 405)

Acrescenta Ribeiro Gonçalves:

“O Marechal, com recursos, fez largos círculos de relações. Os recursos vinham da família, que se acumularam de gerações. E depois, vamos dizer, de transações, de atividades. Ele teve sempre a representação do Estado desde a Constituinte de 1891, quando era coronel e frequentador da Leiteria Bol, onde recebia aquela gente e parentela. Recebia em casa e os encontrava na Leiteria Bol, lá na rua do Ouvidor, que já não existe mais. (...) Era um homem muito atencioso em relação às pessoas de alta categoria que com ele tratavam. Era pitoresco e dominador em relação às pessoas que comandava, na política e nas Forças Armadas. Tinha um comportamento muito especial aos parentes queridos. Adotava o comportamento de apoiar ou auxiliar, antes de tudo, os parentes. Isso também era uma característica de Joaquim Pires (irmão do Marechal), que era um homem simpático. O marechal passou de 1891 até quase o governo de Whashington Luis sem ir ao Piauí. Era o dono da política do Piauí. (DOMINGOS NETO: 2010, 406).

Conclui Ribeiro Gonçalves o retrato do Marechal Firmino Pires, e por extensão do irmão Joaquim, reafirmando a então notável rede de poder dos Pires Ferreira da antiga Barras:

“(...) Em política, uma figura perfeita de oligarca. Se havia dois candidatos, um com todas as qualidades e outro, parente, sem essas condições, ele utilizava sua influência para que o parente fosse o aproveitado. O Joaquim Pires, que era uma pessoa muito amável, tinha também esse mesmo comportamento. Era amigo dos seus e, por isso, ele tinha um domínio absoluto sobre a família, mesmo de longe. A base de apoio do marechal Firmino Pires era sua grande família. Só ela congregava um eleitorado de vulto” (idem: ibidem).

Eram outros tempos. Sobre os quais anotou a professora Cecília Nunes:

“O Estado moderno brasileiro, no período de 1892 a 1930, caracteriza-se por uma liberal democracia, consubstanciada na Constituição Republicana de 1891. Na prática, entretanto, esse sistema não se realiza, uma vez que a República “Federativa” brasileira é uma fórmula política utilizada por uma sociedade predominantemente agrária, em que se mascara a dominação das unidades ricas sobre as pobres” (2016: 59).

 

Senhores e senhoras,

 

A versão de uma história gloriosa de Barras chegou também à palavra escrita. Jornalistas, poetas, contistas, historiadores, romancistas, críticos literários, nascidos nas ribeiras do Marataoã, ainda que delas apartados por força das contingências da sobrevivência em outros rincões, celebrizaram-se, pelo domínio da linguagem escrita, no Piauí e além-fronteiras. Um dos primeiros a discorrer sobre o assunto foi o historiador da literatura e poeta Herculano Moraes, que em 1974, publicou agradável volume de crítica biográfico-temática de título Chão de Poetas. Nele, forneceu um rico panorama da literatura produzida por escritores barrenses, com destaque para Theodoro Castello Branco, Hermínio Castello Branco, Leonardo Castello Branco, Celso Pinheiro, Arimathea Tito, Fenelon Ferreira Castello Branco, Antônio Sampaio Pereira.

A escritura de perfis biográficos de literatos barrenses ganharia fôlego na pesquisa do historiador e genealogista Wilson Carvalho Gonçalves. A ele, sob o rigor positivista, coube o levantamento criterioso e abrangente da trajetória pessoal e dos temas dos livros de seus conterrâneos. Abrangem os estudos de prof. Wilson Gonçalves nomes dos mais diversificados segmentos em trabalho que se materializa em impresso, em 1987, por meio do livro “Terra dos Governadores – Fatos da História de Barras”. Parcela significativa da obra inclinada a perfis biográficos, no caso de escritores, biográfico-temáticos. Em 1994, surge publicação específica sobre o tema, Vultos da história de Barras, obra ampliada em novo título de nome Chão de Estrelas da história de Barras do Marataoan, de 2006. A escritura de perfis biográficos de conterrâneos se faz ver em todos os livros que publicou. Sempre havia um espaço generoso e justo reservado à inserção de notável da Terra-Berço, geralmente com relevo à produção de literatos.

É disto, da produção literária de barrenses, perfazendo o alcance de autores de quase dois séculos, que trata este livro, na escritura enciclopédica, ao modo dos antologistas, do ex-presidente da Academia Piauiense de Letras e presidente do Conselho Estadual da Cultura, Nelson Nery Costa, o historiador, defensor público, professor do Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Piauí e do mestrado em Ciência Política da referida instituição. Além de barrense, por título de cidadania, e de ascendência em antiga família tradicional da Terra do Senador Joaquim Pires, os Gonçalves; sendo ele filho do ex-deputado e advogado Ezequias Gonçalves Costa e neto de Gervásio Raulino Costa. Este, assentando-se em Barras no início do século XX, fundou a firma “A Protetora” e exercera o comércio destacadamente. Logo se transformaria em importante liderança no município, que governaria por dois mandatos entre 1925-1928   e  1930-1931  .  Aliás, descendentes de Gervásio ainda militam na política barrense.

Ao reunir informações sobre 69 escritores, alguns deles descendentes de barrenses, mas igualmente ligados à terra da ancestralidade, Nelson Nery Costa tem consciência de que “o tempo da história e o tempo da narrativa são divergentes” e que “é possível manipular o tempo da leitura, impondo ritmos ao leitor” (LIRA NETO: 2022:121).  Assim, escreve ao modo de um enciclopedista, com o objetivo de explicar ou esclarecer o que julga relevante para entender conceitos e contextos. Ora, “leva o leitor para dentro da cena”; ora “provoca reações” a partir da unidade de pensamento, que é o recorte cronológico-temático, utilizado para catalogar cada perfil biográfico. Vale-se Nery Costa do emprego de informações biográficas em bloco, usadas para a reconstrução do currículo de um grupo social, que possuí na estrutura agrária do passado elemento de identidade – ou a ela se relaciona, direta ou indiretamente, pela negação ou afirmação de um status quo.

Quem queira compreender o que de melhor produziu literatos de Barras do Marataoã ao longo de sua história encontra neste título uma contribuição valiosa que orgulha uma terra rica de tradições. Como patrimônio imaterial, precisa a literatura barrense – e toda a história de conquistas desse povo - ser mais pesquisada, mais divulgada, mais valorizada pelas gerações presentes, para a construção de uma cultura de novos e novos exemplos de superação e compromisso com a causa comum da humanidade: o trabalho e a transformação dos espaços e das mentalidades. Parabéns ao Dr. Nelson Nery Costa pelo desprendimento de forças para discorrer sobre os escritores barrenses, grupo ao qual também se insere identitariamente, compromisso que é, acima de tudo, uma demonstração de ternura e amor às suas raízes. Salve a literatura das ribeiras do rio Marataoã!

Dílson Lages Monteiro é professor, literato e membro da Academia Piauiense de Letras. Autor, entre outros, de O morro da casa-grande, novela que tematiza a identidade de Barras do Marataoã.

 

Referências:

CHAVES, Raimundo Ferreira. Obras Completas. Teresina: FCMC, 2013.

CAVALCANTE NETO, João de Lira. A arte da biografia: como escrever histórias de vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

DOMINGOS NETO, Manuel. O que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale do Parnaíba. São Paulo: Annablume, 2010.

GONÇALVES, Wilson Carvalho. Terra dos Governadores – fatos da história de Barras. Teresina: Gráfica e Editora Júnior, 1987.

_______. Vultos da história de Barras. Teresina: Gráfica e Editora Júnior, 1994.

MELLO, Leônidas de Castro. Trechos do meu caminho. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2019.

MORAES, Herculano da Silva. Chão de Poetas. Teresina: Edição do autor, 1974.

NUNES, Maria Cecília Silva de Almeida Nunes. Oligarquia Pires Ferreira: família e poder político no Piauí. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2016.