Ora-pro-nobis,
Ora-pro-nobis,

O “ora por nobis” na panela, como a oração em latim, ecoa na imaginação e na memória, como chuva intermitente em pingos sincrônicos sobre o teto..

[Dílson Lages Monteiro]

Distantes se vão os dias em que aprendi a rezar em Latim. Não foi em igreja. Nem em família;  embora as primeiras orações as tenha aprendido na casa dos avós maternos, pela lógica da repetição: o terço obrigatório no início de cada noite — “Levai as almas todas para o céu...” Rezar em Latim mesmo, na faculdade. Ali ouvi de verdade, também, o  “ora pro nobis”.

O professor, espanhol. Carregava sempre uma pasta de couro pesada: segurava a alça com grande vigor. Cheguei a supor que guardasse nela preciosidades. E guardava — raridades imateriais: livros e palavras sagradas, promessas de um mundo paradisíaco.

Peculiar também era o falar, ainda ressoando em minha audição. Ao ponto que, às vezes, não  sabia se ele falava ou cantava.  O timbre inconfundível dobrava  algumas letras. O “i” e o “l” sonoramente duplicados, como dobrados outros fonemas, dobrados de humanidade no formalismo equilibrado de sua palavra iluminada. Uma energia invadia os espaços por onde falasse.  Nasceu para pregar a fé. Alguém duvidava? Bastava a oportunidade de ouvi-lo. O que dissesse virava imã, afixado onde se gruda o que não se esquece.  Soube um tempo desses que virou Bispo na Paraíba.

Era, porém, o rigor de suas exigências que, entre a apreensão e o incentivo, mais absorvia os interesses. Éramos, todos os alunos, obrigados a aprender a orar em Latim. Comum que fôssemos solicitados a rezar, individualmente em sua presença, em dia de prova oral. Pelo menos a Ave Maria, aprendi. Ou decorei. “Ave Maria, gratia plena Dominus tecum...”  Certo é que até hoje repito sem hesitar.

Abro a internet para consultar o sentido de uma máxima latina. Ocorre-me a lembrança do latim do padre-professor, e a recordação de outros vocábulos passa a significar mais que qualquer curiosidade. A memória estala em meus dedos...  Estando distante de casa a estudo, no contato com outros sabores, recordo de quando conheci verdadeiramente o “ora pro nobis”. As folhas em hastes e espinhos se misturavam ao frango na panela de barro. A planta, sabor na comida mineira, rica em proteínas, fincada por escravos no fundo das igrejas, para suprir carências alimentares dos então aprisionados.

O “ora por nobis” na panela, como a oração em latim, ecoa na imaginação e na memória, como chuva intermitente em pingos sincrônicos sobre o teto. Ressoa a hipótese dos muitos que se salvaram ingerindo a planta para matar a fome. Ressoa a repetição da língua desconhecida. Repetida, repetida, como uma das condições para pular de período escolar. “Ora pro nobis!”.

Os últimos meses trazem de volta o sentido da oração. Ou das palavras latinas. Meses de turbulência que não se acalma. Vacinas, quando? Diante da desorganização do “país” e da incapacidade (ou preguiça) de a indignação se transformar em agir, surge no fundo das reminiscências o “ora pro nobis”. Sozinha, a sentença lacônica vale como clamor coletivo: “Rogai por nós!”. Como acredito que não tenho vocação para o trágico nem a irresponsabilidade dos negacionistas da ciência, me lembro das palavras de um amigo gaiato, metido a humorista: “Agora, é Deus te livre!”. E Respondo a ele: “Cuidemo-nos, todos nós!”.

 

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