Cunha e Silva Filho    

 

 

         Fala-se, em toda a parte do país, em crise. Pergunto-me com sinceridade d’alma, A quem atinge a crise e a quem interessa? Se existe, é um fato. Não se discute. Alguém me indaga com olhos desconfiados: “E os ricos, os milionários, os que, com frequência, estão dando festas riquíssimas aos seus diletos amigos em lugares suntuosos, em casa faraônicas, em mansões principescas?
        Ora, leitor, a crise nacional de que tanto se fala foi provocada pela anarquia financeira, i.e., pelo gastos bilionários dos governos anteriores, sobretudo do PT. Contudo, se aprofundarmos nossa análise, ela já vem se manifestando há longos anos, nos governos do Sarney, do Collor, do FHC, que melhorou um pouco com o combate da inflação e a mudança da moeda, do cruzado para o real, mas a que custo? Pela ampla privatização de estatais, arrocho salarial do funcionalismo público federal em todo o período do governo  FHC (nome que virou um sigla, em substituição ao nome de batismo e ao sobrenome do presidente intelectual.

       Não tenho certeza, mas penso que foi o grande escritor-humorista Millôr Fernandes (1923-2012) quem, sarcasticamente, cunhou aquela sigla para o sociólogo Fernandes Henrique Cardoso. No governo deste é que foram retomadas a metas do neoliberalismo no país, começado com Collor e continuado com os presidentes que se lhe seguiram, inclusive com o petismo de Lula e Dilma e, agora, com Temer.
         O curioso é que, nos governos petistas, o neoliberalismo sofreu alguma inflexão mas não se afastou dos ventos do capitalismo selvagem. É muito engraçado combinar princípios estatizantes com capitalismo neoliberal. Vai-se entender o que seja realmente esquerda e direita no mundo contemporâneo, a não ser que se tome os dois sistemas políticos como uma “forma política” pós-moderna, empregando este termo de empréstimo à teoria literária ou à história dos tempos modernos.
         Retomo ao termo “crise” econômica, que não é especificamente só brasileira. Até diria que é mundial em parte: vejam-se os exemplos, da Venezuela, da Bolívia, de alguns países africanos. Afirmei linhas atrás que a nossa crise foi produzida em decorrência de mau gerenciamento de nossas finanças, agravada com o mais alto nível de corrupção política e respectiva permanência de um dos nossos males tornados crônicos, ou seja, a impunidade que grassou nos governos petistas de mãos dadas com o alto empresariado, ambos corruptos ou corruptores.
        A gastança desenfreada, sem planejamento, sem responsabilidade com o dinheiro público alcançou um patamar tão extremo que, mesmo a base aliada do governo Dilma, foi forçada a desalojá-la do poder, cm exceção da ala petista. Não foi por não concordarem tanto com os desmandos e inoperância da ex-presidente que Temer a substituiu. Foi pelo fato de que o agravamento da chamada crise político-financeira estava tão insuportável que os políticos “bonzinhos” da oposição a destituíram da presidência.Do contrário, o país cairia em colapso financeiro profundo.
        Outro fato determinante da queda do PT remonta aos primeiros sinais de corrupção do governo Lula, com o “Escândalo do Mensalão,” com a famigerada prática das propinas no conluio entre políticos inescrupulosos, membros do governo federal, do alto escalão do Executivo, em contratos de obras públicas superfaturadas realizadas por empresários sem caráter e dados à rapinagem.

      As investigações da Polícia Federal, levadas a cabo em várias operações, sob a vigilância do Ministério Público e da Procuradoria da República,  concorreram para as primeiras prisões de alguns membros do governo e de políticos envolvidos até os dentes com o lodaçal mafioso da propina tornada moeda corrente nas transações espúrias entre governo e donos de construtoras.
       Entretanto, se algum sinal de melhoria econômico-financeira já se pode descortinar no horizonte ainda incerto, é preciso também acentuar que o Brasil tem muitas faces e muitas formas de lidar com a crise.             Nossa sociedade é por demais fragmentária nos seus níveis de vida. Há setores da vida econômica que estão fora da crise, nos quais  empresários ricos estão muito longe de falarem em falta de dinheiro e de modos de vida social .Ainda temos parcelas da sociedade que vivem nababescamente e mesmo certos tipos de atividade mais modestos não se queixam de nada. Tudo está bom para eles, de sorte que ainda podemos chamar de brasis fora da crise a essa parcelas da burguesia, e mesmo de atividades  menores que rendem uma vida folgada, sem pagar impostos.
      Aí se situam alguns tipos de atividades menores ou médias, como porteiros de condomínios de classe média ou alta ( que têm suas regalias: não pagam aluguel, pois moram nos prédios, não pagam água, luz, gás), biscateiros, mestres de obras, alguns pedreiros mais habilidosos etc. Esse número indefinido da sociedade ainda sobrevive bem melhor do que certos funcionários públicos municipais, estaduais e até federais.
      Ora, num país tão fragmentado socialmente, essa divisão, de alguma forma, até alivia pressões contra governos em dificuldades financeiras. Essas frações menores funcionam como amortecedores de maiores demandas financeiras por parte da sociedade. Elas representam sociologicamente os interstícios do que sobra do bolo econômico-financeiro através da figura do povinho, que consegue driblar as consequências danosas dos grandes problemas do país. Isso nos levaria à seguinte afirmação: há pobres, que nem estão aí para a crise e ainda podem desfrutar das cervejinhas, dos jogos de futebol e do carnaval.

    Quanto mais financeiramente clivada for a sociedade, tanto melhor para os governantes inescrupulosos. E eles sabem bem disso e por isso mesmo deitam e rolam sob o tacão do poder, do cinismo, da lei e das armas. De alguma maneira, não consigo dissociar esses artifícios dos esquemas de uma figura literário-social, que, sob vestes diferentes, já se denominou de pícaro, na Espanha do Siglo de Oro. No Brasil, também como figura literário-social ficou conhecido como malandro, ainda remanescente nos tempos atuais, mas ao lado de um outro que o substituiu em escala ciclópica, nas bandas da marginalidade baixa, o bandido e, das bandas dos “white collars,” políticos e empresários sem vergonha na cara.