Desde muito tempo admirava o entusiasmo contagiante como o saudoso mestre Odeon Batista se referia à maçonaria, a sublime instituição, como ele gostava de proclamar. Nos seus discursos maçônicos, notava-se a força e a vibração de sua alma, quando ele se referia ao Grande Arquiteto do Universo, sobretudo exaltando a suma bondade divina. Odeon transmitia paz e generosidade. Diria que ele era um maçom nato, pois tinha de forma espontânea e natural as qualidades de um verdadeiro mestre maçom. Fiz algumas viagens em sua companhia, integrando sua comitiva, quando ele foi o Grão Mestre do GOEPI.
Certa feita participei de um evento em Piripiri, em que se fizeram presentes algumas lojas das cidades vizinhas, entre as quais a do Oriente de Piracuruca. Nessa sessão, foi lido um trabalho escrito pelo irmão Israel Correia, da Fraternidade Parnaibana, em que era analisado, com muita proficiência e profundidade, o meu poema Mística I, calcado na simbologia maçônica, porém escrito antes de eu ingressar na excelsa ordem. Na oportunidade foi entregue à loja piripiriense um quadro com um banner ilustrado, contendo esse texto.
O Grão Mestre Odeon, com o entusiasmo e vibração de sempre, teceu elucidativos comentários sobre o texto do Israel e sobre o poema. Acrescentou, com a sua costumeira lhaneza, que lhe era sempre agradável absorver o que ele chamou de minha sabedoria. No auge do seu entusiasmo, em flagrante exagero, terminou dizendo que eu era semelhante a uma cacimba, sempre a minar sabedoria.
Logo depois, usou da palavra o irmão Gilberto Escórcio, douto advogado, venerável da loja de Piracuruca. Esse irmão disse que me conhecia, e que já tivera oportunidade de exercer sua profissão na Comarca de Capitão de Campos, da qual eu era titular na época. Contudo, em brilhante e brincalhona ironia, disse que estava admirado de o eminente Odeon haver me comparado a uma cacimba, pois ele considerava que eu seria pelo menos um oceano.
Quando me foi permitida a palavra, esclareci que o Grão Mestre estava certo, pois eu, na minha simplicidade, na minha humildade, não passava mesmo de uma cacimba rasa e seca das terras esturricadas do Ceará, enquanto ele, Gilberto, em seu brilhantismo e erudição, era um poço jorrante das quebradas do Gurguéia. As gargalhados e os sorrisos transformaram as verrinas e catilinárias, um verdadeiro “fogo amigo”, em agradável episódio anedótico e deram o toque de bom humor à solenidade.
Com a palavra novamente, o mestre Odeon explicou a razão de sua metáfora, aparentemente despropositada, em se tratando de “elogio”, e disse que fizera a analogia porque em sua terra natal, o Ceará, as cacimbas eram muito importantes, porquanto ficavam minando um fio d'água perene. Em sua simbologia, eu estaria sempre a “minar sabedoria”, o que bem sei não ser verdade, uma vez que a verdade verdadeira está com o velho Sócrates, quando disse que uma coisa sabia, e isto é que nada sabia. Quando nos encontrávamos, de forma sempre bem humorada, recordávamos essa passagem anedótica e engraçada.
Tempos depois fiquei chocado com a notícia de sua morte, tão precoce quanto surpreendente, no seu pago natal. Morrera ao cair de ponta cabeça num cacimbão, o que me fez recordar a cacimba de sua metáfora, decerto evocativa da nostalgia da paisagem de sua infância e juventude, em que certamente perpassava o fantasma da inclemência das secas, mitigadas apenas por essas fontes, escavadas muitas vezes nos leitos exauridos dos rios e riachos.
As cacimbas do Ceará ainda continuam a ressoar e a escoar em minha saudade, e me trazem a lembrança vívida de um homem bom, de um bom amigo, de um maçom de fato e de direito, que trazia a centelha divina incrustada em seu coração e em sua palavra de fé, esperança, entusiasmo e bondade.
De um homem alto e forte, que tinha a alma suave e sem jaça de um menino.
MÍSTICA
Elmar Carvalho
I
Arrebatado por um carro de fogo
eu próprio em fogo transformado
os céus galguei
as fúrias todas como louco aplaquei
e a escada cintilante de Jacó
passo a passo subi.
Devassei as vísceras mecânicas
da baleia do profeta
e a gênese do primeiro
átomo desvendei.
Penetrei o caos primacial
e o primeiro vagido
da vida escutei.
E Deus estava lá
por trás de tudo:
logo após em regressão
a explosão do átomo primordial.
II
Meu anjo da guarda
em sete anjos transmudado
minha guarda de honra revistava
e com sua espada de fogo
ou raio laser
franqueava-me a entrada
da gruta dos leões
enquanto Daniel dormia
à minha sombra.