Diego Mendes Sousa
Diego Mendes Sousa

O VOO SAGRADO DE DIEGO MENDES SOUSA

 

ENSAIO DE ANA ARGUELHO

 

 

Estou diante de mim com três obras desse genial poeta da Parnaíba, Estado do Piauí, já consagrado nacionalmente: O Viajor de Altaíba, Tinteiros da Casa e do Coração Desertos e Gravidade das Xananas. Ao ler pela primeira vez seus poemas, caí de joelhos diante dos encantamentos de sua poesia com o desejo, próprio de quem lida amorosamente com a literatura, de escrever sobre eles. Ler cada obra sua é como degustar demoradamente o melhor vinho e começo esta resenha, erguendo um brinde à vida com a poesia forte e rica deste brasileiro poeta, a nos mostrar quão grande somos, porque temos a voz de nossos poetas maiores, nossos bardos, nossos profetas a nos acenar com um amanhã glorioso, digno. Nossos viajores.

O conjunto da obra que tenho em mãos é uma festa de luz, cores, sons, imagens. Nesse santuário poético é preciso, senão desvestir-se das roupagens acadêmicas, ao menos relativizá-las, para adentrar esse mundo encantado, com as vestes da magia, do fogo e da delicadeza, para apreender na “evolução cristalizada das ondas” poéticas de Diego Mendes Sousa, a transcendência da vida que se materializa ao longo das obras desse mago que recria audaciosamente o mundo por meio da palavra.

 

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Diego Mendes Sousa é poesia. A poesia que desceu do longínquo norte do país com a força da lava de um vulcão, incandescente e bela, derramando mel e fogo em nossas veias, a nos confirmar que a alta poesia atravessa este país de norte a sul. Dizem que a idade nos torna sábios, mas a minha certeza é a de que a arte nos torna sábios. Diego é jovem e é sábio, porque veio assinalado com dom de poetar. É seu fado, seu destino irrevogável, impreterível, que para nós, seus leitores, é oferenda e dádiva e não precisei ler mais que três obras para ter essa certeza, a cada extrato de texto: “Amar é mistura de profecia e lirismo”, “Abro o tempo que não volta”, “Sou música devastada / em ronda inefável...”. E a sabedoria desse poeta nos assinala que há desvios nos caminhos a nos levar à alta poesia. Diego vai nos ensinando esses desvios enquanto faz dos seus versos um ofertório, para preencher aquele lugar que a vida por si só, não preenche. “A arte existe, porque a vida não basta”, pontificou o grande Ferreira Gullar. Quando se lê um poeta como Diego Mendes Sousa sabemos que a vida não basta, porque nos sentimos preenchidos em algum lugar, uma parte de nós que não se sacia pelo simples viver. Sabemos que há desvios que nos levam a saborosos e secretos lugares. Em um mundo em ruínas, essa voz que chega dos recantos mágicos que habitam o poeta é canção e lenitivo.

No viver contemporâneo, é perceptível um movimento de estetização do mundo. Um desejo de abrir ainda que seja um vãozinho no obscuro da vida para dar espaço à arte, já ferida de morte. Diz Affonso Romano de Sant’Anna, tentando expressar essa necessidade visceral: “Há dias que saio pelas ruas e festas, faminto de beleza. Abro livros procurando certas passagens, leio poemas que sei de cor, de novo ouço uma flauta, um oboé, procuro aquele movimento de cordas de um determinado concerto”. Diego Mendes Sousa nos dá poemas e movimento musical. Assim, sua poética envolveu-me totalmente por preencher o que hoje busco no estertor de uma sociedade que se esvai pelo ralo da história: humanidade e lirismo.

Tenho comigo que vivemos o declínio de uma civilização e a história ensina que, no processo de declínio civilizatório, em meio à profunda barbárie, holocausto, perda de rumos, tédio, imobilidade e escuridão que o assinala, vai brotando o novo nas áreas mais sensíveis do nosso machucado e dolorido ser histórico. O que é o novo senão aquilo que garante que a dissolução não destruirá o nosso “tornar-se” humano ao longo da história? O grande orador e pensador romano Cícero retomou dos gregos a Humanitas, espécie de Pedagogia, na base da qual se assentava a literatura. Bem por isso, a pesquisadora espanhola María Angeles Galino afirmou que, para os romanos, o homem carrega em si, além das virtudes, impulsos, instintos e brutalidades que recordam o animal, e a superação desse estado rumo ao ideal humanitas impõe-lhe o domínio da literatura, como ponto de partida. “El concepto viene dado por la gran tradición grecorromana que desde Homero destinó un lugar de honor en la formación del hombre a la produción literária”. Encontro nos “Ensinamentos sobre o poeta” (p. 36 em Gravidade das Xananas) as bases dessa poética tão extraordinária, em “uma sonata de naufrágios e poemas no abismo”:

 

“A busca desenfreada

do tempo perdido

de outras memórias

nos velhos poetas gregos

nos amados escribas latinos”

 

Percebo essa nova humanidade que brota da literatura, nas ruínas de um mundo em dissolução, quando um dos seus alicerces é a potência lírica que vem daquela tradição grega que Galino menciona, no lirismo dado em acordes musicais, de que a poesia de Diego Mendes Sousa é plena. Diferente do lirismo subjetivista dos românticos, que clama pelas emoções do indivíduo, o lirismo grego nos põe na alma ânsias profundas de um mundo mais humano. Nesse sentido, este poeta vai além dos românticos e do cisma que divide a poesia concretista e marginal e marca a poética contemporânea. Diego não é contemporâneo. Voa mais alto, mais pleno, irmana-se com Manoel de Barros, em busca de novas formas linguais. Como Manoel de Barros, este poeta caminha na linhagem dos transgressores da língua, do verso, da métrica, da palavra, que a transgressão é um dos mais fortes assinalamentos de que algo novo, inusitado, inaugural, está em curso. Todavia, diferente de Manoel de Barros, Diego Mendes Sousa imprime uma carga poética de altíssima densidade lírica às suas “transgressões”, no atravessar de suas fronteiras linguísticas e estéticas. Com ousadia, “engenho e arte”, percorre trilhas e atravessa oceanos, certamente não em busca da doçura dos “ariticuns maduros”, mas dos ensinamentos poéticos carregados de compostura e erotismo, das “xananas mundanas / recolhidas nas manhãs”. Que bela imagem de uma nova humanitas. E é, então, que sua poesia ganha universalidade, quando parte das raízes do seu chão histórico, “detrás da simplicidade / desse mato litorâneo” e atinge com a força e a velocidade de um raio os céus da poética universal, como arauto de um novo mundo onde o erótico e o sublime se tocam.  

 

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Nos processos de suas transgressões poéticas, Diego revela o desmanche de toda uma civilização e a construção de outra. “Mistérios apavorados”, “tempo eternizável”, “como horizontar os ângulos” são algumas das muitas imagens que o poeta obtém alterando a função das palavras e com isso nos provocando a decifrar uma nova linguagem, a lhe atribuir um novo sentido, em que essas aproximações irregulares nos desinstalam da inércia da antiga linguagem e, com ela, do velho e caduco mundo e nos põe a caminhar. Observe-se, ainda, as personificações em que atribui qualidades humanas a seres inumanos como em “éguas entristecidas”, surpreendendo nossos sentidos acostumados ao trivial. Ou sinestesias, “um corpo sonoro de luz” que nos deslumbram e nos conflitam. Ou contradições, “o belo ainda medonho”, que nos põe em movimento. Se não é então por movimentos gerados nas contradições humanas que a história opera! Essas inusitadas mediações estéticas, líricas, sonoras e, muitas vezes, avassaladoras, atravessam todas as obras, nos obrigando a parar, sentir, pensar e assim nos desinstalar diante do inesperado.

Falemos, ainda, da sonoridade própria do lirismo grego, cujos acordes encontro nas notas graves e agudas “da harpa ao longe” que se alternam e dão ritmo à canção “do homem à deriva” dos “ambulantes do amor”, “do choro de Deus no horizonte sem pressa”, mas também da “amplidão dos dias” e dos “enamorados da noite”. Imagens fortes, belas, carregadas de musicalidade, que nos conferem “o que sonhamos além da partitura”, e que nos faz “viajores”, na cadência e no ritmo das palavras aladas de Diego, nos trazendo os ecos da grande cultura ocidental e entrando na alma, mansamente, como música.

Há que se considerar ainda o veio filosófico desse autor. Por meio da poesia, os ensinamentos não estão apenas em Gravidade das Xananas. Perpassam as outras duas obras, ora de forma sutil e delicada, ora com a força exigida dos grandes ensinamentos que chegam ao mundo para movimentar a história, que essa é a função máxima da literatura.  Diego nos ensina sobre o ofício do poeta: “A poesia é um pressentimento”, “A esperança da poesia é ser noturna”. Nos ensina sobre a morte: “De tudo / (agora sei) / que a morte é uma saudade / de face distorcida”. Sobre o tempo: “Acontece que o Tempo é um trem absoluto / com seus trilhos cravados no imprevisível / cuja estação é o desgraçado destino”. Sobre o amor e sua musa dos verdes olhos, todas as formas miraculosas: Altair, Altair. Parnaíba, Parnaíba. Altaíba.

 

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Poderíamos organizar um tratado poético reunindo toda palavra deste incrível poeta sobre cada um desses temas, em uma espécie de poética sapiencial como na obra do grego Hesíodo. Todavia, deixemo-nos apenas pegar a carona do viajor de Altaíba e caminhar com ele pelas sendas da poesia mais pura, do éter, da magia e da sapiência. Embora a poesia de Diego Mendes Sousa abra margem para inúmeros e fecundos estudos linguísticos e poéticos, é nas asas do maravilhoso, do encantado e do sublime que devemos navegar para nos banharmos de um novo humanismo que se delineia nas palavras dos grandes poetas que assinalam as transições civilizatórias. Como Diego Mendes Sousa.

Obrigada poeta. Li o que escrevi e o que os outros escreveram. Nenhum de nós te alcançou, menino mágico. Porque sua poesia não brotou nem floresceu para ser interpretada, analisada, mas para ser sentida, mansamente, em dias de sol ou chuvosos, talvez sobre a ponte de nenúfares de Monet. Obrigada por sua imensa estetização do mundo, obrigada por nos conferir o sentimento de que somos humanos. Enquanto a poesia estiver colocada nesse altar, estaremos preparados e caminhando a bons passos para uma nova civilização, mais humana, honrada, digna.

 

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Ensaio de Ana Arguelho

Professora titular aposentada da UEMS

Doutora em literatura pela UNESP/ Assis / SP

Cadeira 34 da Academia Feminina de Letras e Artes de Mato Grosso do Sul

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Para aquisição das obras analisadas por Ana Arguelho:

https://www.editorapenalux.com.br/autor/Mzk2/Diego_Mendes_Sousa