Andorinhas: caminhos de movimento, pintura de Giacomo Balla.
Andorinhas: caminhos de movimento, pintura de Giacomo Balla.

Reginaldo Miranda[1]

 

Estava na sacada do meu apartamento, à tardinha, em relativa altura, sentado à uma mesa. Absorto na leitura à tela do notebook, fui chamado a atenção para o voo das andorinhas.

- Olha!

- Que foi?

- As andorinhas estão voando.

Essa frase despertou-me abruptamente. Levantei a cabeça e pude apreciar o voo coreográfico das andorinhas azuis. Centenas, talvez milhares delas planando entre e sobre os altos edifícios do bairro Ilhotas, na bela cidade de Teresina. E nas suas asas eu viajei. Viajei no tempo e no espaço. Voltei para a infância querida na pitoresca cidade de Bertolínia, no centro-sul do Estado do Piauí. Elas chegavam aos milhares e tomavam de conta do telhado da igreja e da escola onde estudei, porque eram os prédios mais altos e onde tinham mais tranquilidade para construir seus ninhos e reproduzir a espécie. De vez em quando revoavam e sobrevoavam em círculos; chilreavam e faziam a alegria da meninada que as perseguiam com suas baladeiras. Confesso que nunca lhes causei grande dor, apenas uma derrubei na minha mira. Mas o projétil causou-lhe apenas uma bolha na cabeça. Desfeito o susto recobrou as forças e eu a soltei. Não passavam despercebidas, sendo um acontecimento sua chegada à cidade. Todos notavam e comentavam: é tempo das andorinhas!

Andorinha voando baixo era sinal de chuva. Isso desde cedo fora percebido pelos moradores. Mais tarde soube que essa observação tinha explicação científica, porque seu voo é guiado pelo apetite. São devoradoras de insetos, comendo até dois mil em um único dia. Então, quando a tempestade está próxima, uma corrente de ar quente e úmido empurra os insetos para cima, descendo vertiginosamente para junto do solo pouco antes das primeiras pancadas de chuva. Então, os pássaros acompanham esse movimento, voando alto em um momento e baixo no outro. Nesse último caso o banquete se torna mais atraente porque os cupins e formigas de asa saem das tocas para a revoada do acasalamento. Eis porque as andorinhas voam baixo antes da chuva, mas sem pousar no solo. Para não pousarem elas voam em círculos. Aproveitando as correntes de ar se beneficiam de sua morfologia peculiar: corpo pequeno e asas grandes, para consumir menos energia. Os presságios antigos diziam que elas voavam baixo para fazer chover. Era a inversão da causa pela consequência.

São aves migratórias de espécies variadas, cerca de oitenta, cada qual com suas peculiaridades e rotas distintas pelo planeta. Viajam grandes distâncias, cobrindo cerca de 24 mil quilômetros do continente americano, desde o Alaska à Terra do Fogo. É certo que muitas das espécies vindas para o sul do Piauí, são oriundas do Caribe. Existem outras rotas migratórias da Europa para África e Ásia. No passado faziam a alegria dos marinheiros que as avistavam em alto-mar, anunciando a proximidade de terra firme. Acreditavam os gregos que Ísis, deusa da maternidade, fertilidade e natureza, transformava-se em andorinha à noite, para sobrevoar o sarcófago do marido Osíris, lamentando sua morte.

No inverno elas abandonam os locais frios e migram para regiões amenas, em busca de alimentação. Por essa razão, na antiga China achavam que se escondiam sob o solo. Porém, desde sempre e em todas as rotas migratórias retornam à terra natal no final do inverno, assim anunciando a primavera. São fiéis às origens sempre retornando ao local de seu nascimento, ao mesmo ninho, mostrando, assim, grande senso de direção. Podem voar quinhentos quilômetros em um só dia, alimentando-se de insetos durante o voo.

Desde muito tempo, o voo e movimento migratório das andorinhas despertam o imaginário popular, existindo registros em pinturas, lendas, crônicas, contos, romances, poesias, letras e músicas. Em 1913, o italiano Giacomo Balla, pintou interessante tela sobre o tema, colhendo a imagem de movimento quase beirando à abstração.  Também, tem uma modinha para crianças, que assim principia: “Quando chega o outono voa a andorinha./ Parte para o Sul, para a nova casinha./ Voa, voa, voa, voa,/ voa a andorinha./ Voa, voa, voa, voa/ voa para a nova casinha”.  

Os cantores sertanejos Valdomiro Neres Ferreira (Goiano) e João Roberto Alonso (Paranaense), inspirados na migração dessas belas aves, assim cantaram: “Tem sido uma barra pesada/ Vivendo sozinho aqui nesta casa/A minha formosa andorinha/Me disse adeus e bateu suas asas/
Foi triste a sua partida/Para suportar precisei ser forte/A andorinha voou para o sul/Deixou quem te ama chorando no norte//
Andorinha prometeu voltar/Antes da chegada do cruel inverno/Porém ele não voltou/E o meu sofrimento tem sido eterno/
Andorinha em forma de mulher/Te dei liberdade pra você voar/Alguém falou que te viu/Voando no Estado do Paraná/Por causa de um tombo de amor/As suas asas estão machucadas/Talvez foi esta razão/
Que ela não voltou à velha morada”.

A portuguesa Ana Moura, recentemente lançou a música Andorinhas, apresentando-a como uma quebra de amarras, um símbolo de emancipação, um verdadeiro hino à liberdade, afinal as andorinhas é que têm asas e liberdade para voar: “Passo os meus dias em longas filas/em aldeias, vilas e cidades/As andorinhas é que são rainhas,/A voar as linhas da liberdade/Eu quero tirar os pés do chão/Quero voar daqui pra fora/E ir embora de avião/E só voltar um dia/Vou pôr a mala no porão/Saborear a primavera/Numa espera e na estação/Um dia disse uma andorinha:/ ‘Filha, o mundo gira/Usa a brisa a teu favor/A vida diz mentiras/Mas o sol avisa antes de se pôr’/Eu quero tirar os pés do chão/Quero voar daqui pra fora/E ir embora de avião/E só voltar um dia/Vou pôr a mala no porão/Saborear a primavera/Numa espera e na estação/Já a minha mãe dizia/‘Solta as asas/Voltas as costas,/Sê forte, avança para o mar/Sobe encostas, faz apostas/Na sorte e não no azar’”.

De fato, a cantora portuguesa as viu como símbolo da emancipação e da liberdade, indo e vindo conforme as estações do ano. Ela mesma pretendia imitá-las “e só voltar um dia”. Afinal, somos nós como as andorinhas! Nascemos, crescemos e partimos “nesse mundão de meu Deus”, em busca de situação mais amena, de melhores dias. Mas quantos de nós pode, ao final da jornada, voltar para casa? Muitos sucumbem no caminho, outros têm as asas partidas, como na canção sertaneja. Nem todos podem voltar como cantou o Trio Parada Dura: “As andorinhas voltaram/E eu também voltei/Pousar, no velho ninho/Que um dia aqui deixei//Nós somos andorinhas/Que vão e que vem/À procura de amor,//Às vezes volta cansada,/Ferida machucada/Mas volta pra casa/Batendo suas asas/Com grande dor.//Igual a andorinha/Eu parti sonhando/ Mas foi tudo em vão/Voltei sem felicidade/Porque, na verdade/Uma andorinha/Voando sozinha/Não faz verão”.

Afinal, para onde vão as andorinhas? Para onde vamos nós?

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado especialista em Direito Constitucional e em Direito Processual, foi membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI, da Comissão de História, Memória, Verdade e Justiça, assim como cofundador e presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí. Representa a OAB-PI na composição da Comissão de Estudos Territoriais do Estado do Piauí – CETE (17.2.2021 – 31.1.2023). É membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Contato: [email protected]